San José de Flores, Buenos Aires: aqui nasceu, 'namorou' e cresceu o Papa Francisco
De aldeia com ar puro e local de veraneio para ricos a bairro popular e inseguro, passaram 200 anos. Entretanto, aqui nasceu e cresceu o Papa Francisco.
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Algum rebuliço na entrada da Basílica de San José de Flores, com voluntários em campanha de recolha de donativos para obras sociais da igreja. Dentro, o silêncio habitual de um lugar de culto. À missa, com o padre na parte lateral da basílica e não no altar, assistem umas 20 pessoas neste início de tarde de quarta-feira. Uma voz e uma guitarra soam por entre as paredes deste templo católico de San José das Flores, no bairro com o mesmo nome, onde nasceu, estudou, rezou e sentiu o apelo do sacerdócio um jovem chamado Jorge. Bergoglio de nome de família, hoje Papa Francisco.
Em março, para assinalar os dez anos da eleição, o Papa fez chegar aqui um presente: trata-se de uma escultura de um metro intitulada "são José dormindo" e lembra a passagem do Evangelho onde, em sonho, um anjo aparece ao santo para anunciar que o filho que Maria esperava era o Messias. A imagem foi trazida para a Argentina pela nunciatura apostólica e foi apresentada na escola Nossa Senhora da Misericórdia (entre as avenidas Directorio e Camacuá), onde o papa Francisco recebeu a primeira comunhão e a crisma, e onde também celebrou a primeira missa. Chegada à basílica, a escultura foi entronizada de forma provisória no altar de Nossa Senhora de Luján.
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Luís Avellaneda é o secretário desta paróquia. Sem estar a contar, dispõe-se a falar com a TSF assim que abre a porta do pequeno escritório após o almoço. Maria, voluntária que encontrei à porta, dissera-me que, mais que um dos padres, era ele quem mais sabia sobre a história da basílica.
Luís Avellaneda, o que me pode dizer sobre esta Basílica de São José de Flores?
A Basílica de Flores é um templo importante nesta cidade e nesta Arquidiocese de Buenos Aires. É um templo que conheceu os inícios da independência argentina, já que o atual templo foi fundado em 1806, mas ao longo dos três templos tivemos a capela primitiva, depois o templo que Juan Manuel de Rosas construiu e a atual basílica. San José de Flores viu a história que ia da capital às províncias e das províncias à capital passar por esta Avenida Rivadavia. É um lugar de passagem obrigatória.
É uma passagem para fora da capital...
Esta avenida Rivadavia é a avenida mais longa, porque começa na Plaza de Mayo, na praça central, digamos assim, e faz a ligação com o que depois levava às províncias do norte, o Caminho Real que levava às províncias do norte e aos seus derivados, porque se podia sair daqui pelas estradas internas. Naquela altura, no século XIX, as províncias de Córdoba, Mendoza, San Juan, Tucumán, ou seja, tudo o que se encontrava no noroeste da Argentina, no centro e noroeste da Argentina, podia ser alcançado a partir daqui e, por sua vez, ligava-se também a outras províncias. Naquela época, este era um povoado rural da província de Buenos Aires. Viu tudo o que aconteceu: as tropas foram devolvidas na luta pela independência, o acantonamento das tropas na praça, enfim, toda uma história de que San José de Flores foi testemunha silenciosa e testemunha ocular de toda essa história de Buenos Aires e, podemos dizer, da Argentina. San José de Flores sempre foi um lugar, com o passar dos anos e as epidemias na cidade de Buenos Aires, Flores sempre foi um lugar de recreação, um lugar para vir e passar o verão. Depois, muitas famílias patrícias instalaram-se aqui com grandes casas de campo, que já desapareceram, porque a globalização, digamos assim, o crescimento demográfico fez com que as quintas desaparecessem, mas eram um lugar para passar o verão e sair da cidade de Buenos Aires para vir apanhar ar fresco, ar puro. Depois, a cidade de Buenos Aires expandiu-se de tal forma que passou a englobar Flores e a localidade de Belgrano também dentro do seu território, digamos, dentro dos seus limites.
E hoje não há nenhum não há ar puro e fresco por causa da poluição e do trânsito. Mas as pessoas ainda vêm muito à Basílica de San José de Flores?
Sim, primeiro, porque é um dos poucos templos na América dedicados a São José com o título de Basílica. Há outros, mas não com uma imagem de S. José com coroação pontifícia, como é a imagem que é venerada no altar-mor. Não sei se há ou houve outra coroação, mas os dois santuários de São José na América, que têm uma imagem coroada e que são santuários aos quais o povo cristão vai, são na América do Sul San José de Flores e na América do Norte, no Canadá, a igreja ou santuário de San José de Fray Andrés, que fica em Montreal. Com isso, dizemos que São José toma a América do Sul e a América do Norte a mantém, como que num grande parêntesis protegido. São José do sul olha para cima. De cima, ele olha para o sul. Penso que é um sinal. Isto porque a devoção a São José em toda a América espanhola e portuguesa, também no caso do Brasil, são países evangelizados por Espanha, onde a devoção à Virgem Maria foi semeada, isto em primeiro lugar. E paralelamente a São José, e logicamente, aos santos das ordens religiosas mendicantes que evangelizaram estes povos, franciscanos, dominicanos, mercedários, tantas ordens religiosas que fizeram com que os nossos países levassem gravada a fé cristã, não?
Como foi a presença de Bergoglio aqui, qual a historia do atual Papa Francisco com esta basílica?
Bem, Flores foi o local do seu nascimento. Este era um bairro, isto é, quando deixou de ser uma aldeia independente e foi integrada na capital. Demos-lhe o nome de bairro. O Papa Francisco, Jorge Bergoglio, nasceu neste bairro, foi educado aqui. Toda a sua escolaridade primária e secundária decorreu aqui no bairro e nesta igreja de São José de Flores. Um dia, quando se confessou aqui, o padre que o ouviu disse-lhe algo que despertou nele a possibilidade de se tornar padre. Começou a pensar nesta vocação para o sacerdócio e no ano de 1957, decidiu-se definitivamente. Deu o seu consentimento interior, digamos assim, para se dedicar a Deus, Mas bem, depois de muitos anos, nos anos 90, ele foi consagrado bispo auxiliar de Buenos Aires e foi designado para um dos vicariatos, para o vicariato, neste caso de Flores, e assim voltou às suas raízes, depois de 40 anos na cidade.
Há uma casa numa rua onde o Papa nasceu, na rua Varela, e na rua Membrillar uma outra casa onde viveu, mas ainda há por aqui pessoas que o tenham conhecido?
Os anos passaram, obviamente, os anos passaram para todos nós, os nossos cabelos embranquecem e andamos cada vez mais devagar. Portanto, a vida passa, a vida passou. Estamos a falar do ano de 1957, estamos em 2023, passaram muitos anos. As pessoas que foram contemporâneas do Papa Francisco, muitas delas, se não a maior parte, já faleceram e outras que podem restar já não estão neste bairro e são muito velhas. Quanto às duas casas, estão intactas. Isso foi um milagre, porque nas Flores tudo o que era velho foi demolido para dar lugar aos prédios de apartamentos. Atualmente ainda estão de pé as duas casas onde ele nasceu, na rua Varela, e, quase a 300 metros, a da rua Membrillar. Essa foi uma casa posterior, para a qual a família Bergoglio se mudou. Atualmente, nenhum dos seus familiares vive aqui nas Flores. Sei que a sua irmã viveu numa das localidades da linha do Oeste e sei que um sobrinho também vive na capital para a zona Norte, mas se formos tocar à campainha destas casas só encontraremos pessoas desconhecidas que também não o conheciam.
Foi o que fiz e ninguém atendeu. Mas é um motivo de orgulho para o bairro o facto de o Papa ser argentino e, principalmente, ser daqui, do bairro?
Sim, penso que é um motivo de orgulho para toda a América Latina ou para toda a América, porque é a primeira vez que um Papa americano acede ao papado, que um cardeal americano acede ao papado. É obviamente um motivo de orgulho que a América possa agora dar frutos deste género, mas logicamente para o pequeno país, começando pela Argentina, descendo até Buenos Aires e até Flores e até esta paróquia, isto é um motivo de orgulho e de alegria. Pensamos que bem, quando já não estivermos cá e ele também já não estiver neste mundo, as gerações sucessivas vão obviamente olhar para isto como uma conquista, como um motivo de orgulho, como um sinal. Chamar-lhe-íamos um sinal de honra e de pertença ao papado. Não é pelo facto de um filho deste bairro se tornar bispo ou cardeal; enfim, todos o são. São coisas importantes, e nós também as tivemos. Mas o pontificado é presidir a partir de Roma. É o bispo de Roma que preside à Igreja Católica Universal. E isso tem obviamente o seu peso.
Como é que o vê? Como pessoa, como um homem, como uma personalidade?
Olho para ele deste ponto de vista: ele é um filho desta paróquia e deste bairro. Eu também nasci aqui, neste bairro, os meus pais casaram nesta igreja, os meus irmãos e eu fomos batizados. Fizemos a primeira comunhão. Ou seja, a nossa vida religiosa, daqueles que vêm das flores, gira em torno desta igreja, que é um edifício de referência, agora Flores sempre. E esta é uma visão muito pessoal. Esta igreja de São José de Flores sempre esteve na cidade como um farol, como aquele farol que gira com a luz e atrai os navios para o porto. Pois bem, aqui Flores é um farol que sempre atrai homens e mulheres desta geração, como foi no passado, para o encontro com Deus. Por isso, creio que o facto de um filho deste bairro ser Papa significa que este farol tem muito mais peso, muito mais luminosidade. O que todos nós temos que aprender é a valorizar isso, a valorizar a figura de um pontífice nascido nas Flores. Penso que toda a gente em Flores o sabe, mas parece-me que não o aprofundamos suficientemente e não o valorizamos suficientemente. Eu diria que a profundidade da personalidade de Bergoglio, já para não falar do seu pontificado e dos seus ensinamentos merecia mais. Não há papa mais moderno, mais em sintonia com os tempos atuais.
Filho de um casal de imigrantes italianos (pai era ferroviário, e mãe, dona de casa) que para ali foram nos anos 1940, tendo permanecido nas ruas Varela e Membrillar durante algumas décadas, Bergoglio é um filho do bairro San José de Flores. A vizinha Amália não se encontra no bairro. Foi 'namorada' do atual Papa quando tinham doze anos. Quando Bergoglio foi eleito chefe da Igreja Católica, abordada por muitos jornalistas, Amália confessou que, naquela brincadeira de crianças, o pequeno Jorge Mário, então fervoroso adepto da religião do futebol e das cores do San Lorenzo de Almagro, cujo estádio também fica em Flores, a pedira em casamento e lhe dissera: "se não casares comigo, vou ser padre".