São Tomé e Príncipe é o segundo maior consumidor de álcool na África da lusofonia, depois da recordista Angola. Muitas mães dão álcool aos filhos para enganar a fome.
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Isabel de Santiago, da Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa (FMUL), estuda o consumo de álcool e drogas por crianças e jovens em São Tomé e Príncipe, e percebeu que, neste país onde a pobreza extrema é uma realidade, há pessoas que ingerem bebidas alcoólicas para "enganar a fome".
Mas há mais conclusões preocupantes na investigação que a especialista em comunicação em saúde pública, residente em Portugal mas também com nacionalidade são-tomense, vai apresentar já em junho de 2020 na revista Acta Médica Portuguesa. É o jornal Público que conta esta quinta-feira que, durante meses de observação, Isabel de Santiago detetou que as pessoas carregavam consigo garrafões de álcool em vez de água para beberem durante o dia, o equivalente a "metade de uma garrafa de litro e meio".
A investigadora ficou surpresa por perceber que, em São Tomé e Príncipe, havia pessoas embriagadas desde a manhã, logo pelas 04h30, quando começa o dia em pleno continente africano. Os níveis de consumo de álcool têm vindo a aumentar, de acordo com os registos deste estudo liderado por Isabel de Santiago e que conta com Ruy Ribeiro (coordenador de bioestatística e biomatemática), Rui Tato Marinho (diretor do serviço de gastroenterologia do Centro Hospitalar de Lisboa Norte), Leonor Bacelar Nicolau (especialista em economia da saúde da FMUL) e José Pereira Miguel (especialista em medicina preventiva) na equipa de investigação.
"A pessoa bebe até cair. Dorme, e os sintomas da abstinência são enormes. Se a pessoa não tiver um desmame, vai ter consequências graves, como cirroses hepáticas", explica a professora da FMUL, em declarações à TSF. Alarmada com o impacto que este hábito tem na saúde dos são-tomenses, a investigadora prenuncia: "O que vai acontecer em São Tomé com estes bebedores excessivos é a morte. Os dias e anos que se poupariam se não se bebesse excessivamente em São Tomé seriam meses e anos quer se salvariam às próprias pessoas."
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Além da saúde, este problema estende-se a situações promovidas pelos efeitos do álcool. "Bebedores de idades muito tenras despoletam uma maior desinibição, podendo potenciar abusos sexuais e violações. Esta realidade acontece em São Tomé e Príncipe, e isto é alarmante", alerta.
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Da análise consta também as drogas são um problema premente, num território em que, como relata Isabel de Santiago ao Público, não há "estilos de vida saudáveis", "políticas de educação e comunicação em saúde". A prevenção é também, de acordo com a investigadora, uma das maiores lacunas, já que se investe fundamentalmente ao nível das doenças transmissíveis, como é a sida, e menos nas crónico-degenerativas.
A Organização Mundial de Saúde assinala que São Tomé e Príncipe é o segundo maior consumidor de álcool na África da lusofonia, depois da recordista Angola. A diferença de habitantes entre os dois territórios evidencia a dimensão do problema em São Tomé e Príncipe: são 200 mil contra os 29 milhões de residentes em Angola.
A OMS africana em São Tomé e Príncipe sublinha, em declarações ao jornal Público, o machismo como um fator social que contribui para acentuar esta realidade. A organização explica que o homem africano, na sua generalidade, acredita que beber álcool é um sinal de "virilidade".
Ainda assim, a população que frequenta a escola é a "mais vulnerável", como destaca o estudo. Os 2064 questionários realizados, num total de 12% desta população, abrangeram 16.924 jovens do ensino público, da oitava classe ao ensino superior, qualificante ou profissionalizante. Os resultados mostram que o sexo masculino é o que mais consume substâncias alcoólicas (58%, contra os 43% femininos).
Os filhos de mães com baixa escolaridade consomem mais do que aqueles cujas progenitoras estudaram mais. Isabel de Santiago afiança mesmo que há menores, com seis e sete anos, embriagadas nas salas de aula, já que as mães lhes dão bebidas alcoólicas com metais pesados e aguardente de cana em jejum de forma a matar as lombrigas e a fome. Consomem mais álcool do que leite, facto que a especialista em comunicação em saúde pública considera "lamentável", e que suscitou uma apresentação perante o Parlamento Europeu.
À TSF, Isabel de Santiago frisa a necessidade de Portugal agir com prontidão. "Nós temos de intervir rapidamente. É importante que o Instituto Camões e o Ministério dos Negócios Estrangeiros possam desenvolver e apoiar mais a promoção da saúde num país tão pequenino."
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"Penso que o [Instituto] Camões poderia neste momento apoiar, no sentido de as medidas serem feitas. Temos equipas formadas com capacitação para intervir junto destas comunidades. É impossível combater este tipo de costumes se não estivermos no terreno", refere ainda a professora, que acredita que esta obra é exequível "potenciando os líderes das comunidades e as mães".
"Este trabalho não se faz nos gabinetes dos hospitais só com médicos. Trata-se de medicina preventiva, e não curativa", conclui.