Sérgio Ramirez e a Nicarágua "Sandinista": "Vai-te embora Ortega, o teu tempo acabou"
Desde abril de 2018 que a Nicarágua tem vivido manifestações e confrontos violentos. A oposição acusa o Presidente Daniel Ortega e a mulher e vice-Presidente, Rosario Murillo, de abuso de poder e de corrupção. A crise no país já causou centenas de mortos e de desaparecidos, milhares de feridos e forçou milhares ao exílio. Entrevista que é um grito de alerta de um homem que foi no passado vice-presidente do líder sandinista.
Corpo do artigo
Sérgio Ramírez é um escritor da Nicarágua. Tem 76 anos e fez parte da revolução sandinista que derrubou a ditadura de Somoza. Em 1984 foi eleito vice-presidente da Nicarágua, apoiando a candidatura de Daniel Ortega, mas mais tarde distanciou-se politicamente e é, hoje em dia, um dos mais acérrimos críticos do atual Presidente. Em 1996 colocou um ponto final na vida política e passou a dedicar-se apenas à escrita. Em 2017 foi Prémio Cervantes. Esteve esta semana na Póvoa de Varzim a apresentar o livro "Já Ninguém Chora Por Mim".
O personagem central do seu livro, o inspetor Dolores Morales, personifica, de alguma forma, o desencanto coletivo em relação à situação no país?
Creio que, de alguma maneira, o inspetor Morales me personifica a mim e àqueles que participaram na revolução há quarenta anos. É um sobrevivente da revolução, um guerrilheiro, que se converteu em polícia e que neste romance passou a detetive privado. E é um desiludido com o rumo que tomou a revolução, só que ele é um polícia e eu sou um escritor, mas é uma desilusão coletiva.
Foi o ideal da revolução que colapsou ou foi a gente que a protagonizou que matou o ideal?
Creio que a revolução era maior do que a gente que a fez. A revolução sandinista foi um ideal enorme, vasto, e a gente que a fez não esteve à altura, porque se interpôs a ideologia muito mesquinha, a ambição de poder, porque me parece que numa revolução sempre se interpõem os fatores humanos, os piores fatores humanos, que ficam muito distantes das pessoas. Creio que foi isso que aconteceu na Nicarágua.
Tem saudades do tempo da revolução?
É, para mim, uma época muito nostálgica, claro, parte fundamental minha juventude. Na altura acreditava que estava a fazer o que era necessário. Deixei tudo pela revolução, desde logo a escrita, a família, deixei muitos amigos que estavam contra a revolução e, hoje, quando olho para trás, a minha pergunta é sempre se hoje faria o mesmo. E respondo: se tivesse a mesma idade, faria o mesmo, porque não posso fazer essa pergunta já velho. Tens que voltar a esse tempo, com os mesmos ideais, com a mesma idade, as mesmas esperanças.
Faria de novo?
Na mesma época sim, se tivesse a mesma idade e a época fosse a mesma. Mas a política no mundo mudou muito, o mundo estava cheio de ideais nos anos setenta, hoje não.
Hoje o mundo não pode mudar com revoluções?
Ninguém acredita nisso. Nem mesmo eu. Se me pergunta se a crise que temos hoje na Nicarágua, com outra ditadura, se a poderíamos resolver com outra guerra civil, diria que não. Sei o que são as consequências de uma guerra, o sangue, a morte dos jovens.
Li que a Igreja da Nicarágua e organizações da sociedade civil e de defesa dos direitos humanos solicitaram a libertação de centenas de presos políticos e detidos nos protestos dos últimos meses da crise política. Qual é o papel da Igreja?
De mediador. O papel da Igreja é fundamental, é muito importante porque tem muito prestígio entre a população. Desempenhou um papel muito valente durante a repressão em abril do ano passado, com os membros do clero a saírem à rua, desde os padres das paróquias mais humildes aos bispos. Têm muito prestígio. Aquilo de que falamos agora é da negociação com Ortega e creio que não há nenhuma negociação possível sem a intermediação dos bispos.
Cerca de setecentas pessoas, entre elas estudantes, camponeses, jornalistas, estão detidas, ao que se diz, em condições muito precárias, insalubres. O que se sabe dessas condições?
Essas pessoas foram detidas com um sentimento, diria eu, de vingança oficial. Estão a ser castigadas por se terem rebelado contra os grandes usurpadores do país, o casal presidencial. Têm-se como pais da pátria e, portanto, rebelar-se contra eles é um delito. Por isso foram castigados de forma muito dura, em condições carcerárias que ninguém pode imaginar, sem processos legais, impondo condenações que são estabelecidas pela presidência, os juízes apenas copiam as ordens que lhes chegam. Há tempos condenaram um líder camponês a 300 anos de prisão. A lei não o permite, o máximo são trinta, mas isso mostra a sanha persecutória, acumulando crimes e crimes até atingir 300 anos, o que é completamente absurdo. De forma que hoje, quando se fala de negociação, não é possível qualquer negociação sem que primeiro libertem toda esta gente que está presa.
Os números são impressionantes. No ano passado, houve 325 mortos, centenas de detidos e milhares de exilados para os países vizinhos...
Trezentos e vinte cinco mortos, para mim, é um número muito baixo. Há organizações de direitos humanos que têm o registo de mais de 500, 500 mortos, muitos deles assassinados por forças paramilitares, ou por franco-atiradores, a maioria jovens de 25 anos, mortos só porque participavam em marchas contra o regime. Na verdade, foi um massacre que durou desde abril até agosto do ano passado.
E apesar da repressão, a sociedade civil continua mobilizada?
Continua mobilizada espiritualmente, porque o espírito não cai, mas as pessoas não podem movimentar-se porque vão para a prisão. Quem quer que seja que decida manifestar-se com uma bandeira da Nicarágua pode ser julgada por terrorismo.
Uma bandeira da Nicarágua?
Uma bandeira da Nicarágua. A bandeira transformou-se num delito. É a coisa mais absurda e difícil de explicar, empunhar a bandeira, que é o símbolo do país, tornou-se um delito porque incarna o protesto.
Mesmo que não se conhecessem detalhes da governação, o facto da vice-presidente ser mulher do Presidente coloca imediatamente a Nicarágua sob suspeita em termos de transparência e governação.
Sim, claro. É um facto muito estranho, seja na América Latina ou no mundo. Que a mulher do Presidente seja a vice-presidente é algo muito raro.
Ou vice-versa...
As pessoas nunca conseguiram digerir isto, esta expressão de poder familiar absurdo, mas é isso que enfrentamos.
Se ele o ouvisse, o que é que o Lord Dixon do seu livro diria a Daniel Ortega?
Vai-te embora. Acabou o teu tempo. Vai-te embora, não tens mais nada para fazer no país. Vai enquanto há tempo para uma saída pacífica, acordada. Acredito muito nisso. Antes que haja um conflito que todos vamos lamentar. Este é o momento de ceder, convocar eleições dignas desse nome, para que as pessoas decidam quem governará o país. Mas Ortega não pode ser outra vez governante. O seu tempo terminou.
Quando foi a última vez que falou com ele?
No ano de 1999, faz agora 20 anos, 20 anos, sim.
Mudou muito o homem que fez a revolução ou é o mesmo?
Para mim é outra pessoa. Porque eu tive uma relação muito próxima com ele, era um homem com sentido de humor, nunca nele conheci tendências de açambarcamento do poder. É verdade que a revolução não era uma revolução democrática. Era uma revolução autoritária, que pretendia impor um sistema económico e social novo, era a vanguarda, com a frente sandinista a simbolizar o homem do povo. Primeiro estava a mudança do sistema social e só depois a democracia, mas hoje em dia é uma situação distinta: não há um projeto revolucionário, não há uma ideia de mudança social profunda, há apenas ambição da manutenção do poder por parte de uma pessoa e da sua família, usando as palavras da revolução, usando a mesma retórica que já não funciona. Os jovens que saíram para a rua não acreditam nessa retórica. São os netos da revolução e não acreditam nessa retórica.
Tem algum plano para um novo livro?
Esta situação no país interrompeu-me a escrita porque uma situação como a que vivemos, assim tão dramática, invade o espaço do escritor. E senti-me coibido...
Não o inspira?
Não. Senti-me coibido de escrever enquanto lá fora o país se incendeia. Mas refleti e, claro, o meu dever é escrever, eu não sou mais um político. Se não escrevo não exerço o meu ofício, então comecei a fazê-lo de novo. Não será uma novela que tenha que ver com este tema. Já há dois livros com este personagem, o inspetor Morales, pelo que vou escrever um terceiro sobre o que aconteceu no ano passado e está a ocorrer agora. Mas a literatura é um assunto do passado, não é do presente. São factos sobre os quais não se pode escrever assim...
Precisam de distância...
Precisam de alguma distância porque é uma situação que está por resolver, nem se sabe como se vai resolver. Sei que se vai resolver, tenho essa convicção, de que o país vai dar um passo rumo à democracia, mas não sabemos como.