Srebrenica, trinta anos depois: genocídio ou crime contra a humanidade, uma cidade entre a dor e a negação
Passam trinta anos sobre o maior massacre em solo europeu desde o fim da Segunda Guerra. O Tribunal Internacional de Justiça não teve dúvidas: foi um genocídio. Mais de oito mil homens e rapazes muçulmanos bósnios mortos por militares sérvios bósnios. Memórias de Srebrenica, uma cidade entre a dor eterna e a negação
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A pouquíssima distância do Centro Memorial de Srebrenica, na Bósnia-Herzegovina, onde estão sepultadas as vítimas do massacre considerado genocídio de 1995, algumas das “Mães de Srebrenica” encontraram “uma espécie de paz num lar para idosos recentemente inaugurado”, conta o Balkan Investigative Reporting Network (BIRN), uma rede regional de jornalismo de investigação que cobre toda a região dos Balcãs.
Passaram 30 anos desde que as forças sérvias da Bósnia mataram mais de oito mil rapazes e homens muçulmanos bósnios. Conta o repórter do BIRN, Azem Kurtic, que as mães das vítimas ainda observam “cada visitante que entra pelos portões com uma esperança silenciosa, à procura de um vislumbre de um filho, marido ou primo perdido”.
Roberta Metsola, na sessão do Parlamento Europeu dedicada a Srebrenica, esta semana, em Estrasburgo, lembrou: “Tragicamente, muitas vítimas continuam por identificar.”
A justiça para os perpetradores continua incompleta, a negação do genocídio persiste de modo significativo do lado sérvio e as gerações mais novas crescem numa sociedade ainda marcada por uma profunda divisão étnica, entre sérvios bósnios (hoje em maioria na cidade, ao contrário do que acontecia antes da guerra civil após a declaração de independência da Bósnia-Herzegovina face à Jugoslávia em 1992) e muçulmanos bósnios.
O negacionismo em relação ao genocídio não é um exclusivo do lado sérvio (há várias correntes, a nível internacional, que admitem ‘apenas’ ter sido um massacre ou um crime de guerra, mas evitando a formulação mais grave, uma vez que não esteve em causa a tentativa de eliminação de todos os muçulmanos bósnios de Srebrenica ou do país), mas, ainda assim, praticado politicamente pela liderança dos sérvios bósnios. Escrevia Alixandra Fazzina, no The Guardian: “O currículo escolar dos sérvios da Bósnia omite o genocídio e a maioria das escolas de Srebrenica reflete uma cultura de negação que se tornou corrente. O presidente ultranacionalista da Republika Srpska, Milorad Dodik, liderou o processo e proclamou que não só Srebrenica não tinha sido um ato de genocídio, como o número de vítimas tinha sido muito exagerado. As histórias revisionistas, juntamente com os objetivos secessionistas de Dodik alimentaram ainda mais a segregação.”
O relator para a Bósnia no Parlamento Europeu, o checo Ondřej Kolář, fez esta semana o ponto da situação relativamente à Bósnia, por altura do trigésimo aniversário de Srebrenica: “A incapacidade da Bósnia-Herzegovina de passar de Dayton para Bruxelas é algo com que, obviamente, não nos podemos congratular. É algo que devemos lamentar, porque podemos vê-lo não só como um fracasso da Herzegovina pessoal, mas também como o nosso próprio fracasso, porque não fomos capazes de trabalhar eficazmente com o país para fazer as reformas necessárias, embora tenham sido feitas algumas reformas e eu não quero ser apenas crítico”.
Kolar não tem dúvidas: “O futuro dos Balcãs está na Europa e não sob o domínio russo." A Bósnia e Herzegovina, considera, "está na situação mais difícil da Europa a seguir à Ucrânia e é preciso encontrar uma forma de a ajudar a integrar-se plenamente nas estruturas ocidentais. Os acontecimentos na Bósnia-Herzegovina demonstram todos os dias porque é lutar pela paz, estabilidade e desenvolvimento, porque se desistirmos”, argumenta o eurodeputado do PPE, “podemos voltar a enfrentar a guerra e a destruição".
Quando, pela segunda vez (a primeira foi em 2001) visitei o enclave bósnio de Srebrenica em 2013, no meu grupo estava o bósnio de Sarajevo Sevko Bajic: “Acho que consegui sentir a sensação de impotência que as pessoas sentiam quando estavam lá dentro, porque eu vivia em Sarajevo durante os 4 anos de guerra. Por isso, tenho a noção do que significa estar num cerco. E, durante esse tempo, pensava que não havia pior do que Sarajevo. Mas quando cheguei a Srebrenica, apercebi-me: ‘Felizmente, estamos vivos.’ Muitas pessoas lá não conseguiram sobreviver.”
No grupo do Transatlântic Leadership Seminar (TLS) estava também o sérvio Ivan Vejvoda, na altura vice-presidente do GMF: “É claramente a maior tragédia da história europeia desde a 2.ª Guerra Mundial. O assassínio de mais de 8000 homens e rapazes é algo incompreensível para uma pessoa normal. Foi definido como um genocídio pelo Tribunal Internacional de justiça. A nível pessoal, é sempre uma experiência extremamente difícil ir lá. Mas como sérvio, sinto-me mais confortável por saber que o meu presidente, o presidente em quem eu votei, visitou Stebrenica e pediu desculpas pelo que aconteceu.”
O presidente era então o democrata Boris Tadic. Hoje, com Aleksandar Vucic no poder, seria impossível os muçulmanos bósnios ouvirem tal pedido de desculpas. O nacionalismo sérvio, recauchutado, regressou a Belgrado. Vejvoda, que liderara anteriormente o Balkan Trust for Democracy, organização particularmente ativa na promoção da democracia na região, dizia-me que o reconhecimento do massacre de Srebrenica pelo então chefe de Estado sérvio representava “passos simbólicos, mas mesmo sem passos simbólicos de liderança como este, não conseguiremos avançar". "Por isso, ter estado lá pela primeira vez foi um momento muito emotivo. Claro, sem esquecer que eles (os sérvios) também foram vítimas. Mas este é um crime tão grave que penso que se destaca de todos os outros.”
E o que aconteceu antes, durante e depois, daqueles dias de julho de 1995?
Em meados de abril de 1993, o Conselho de Segurança da ONU declarou Srebrenica um safe haven, zona segura. Ou protegida. Nem uma coisa, nem outra, rapidamente se percebeu. Civis sérvios bósnios tinham sido atacados pelas forças dos muçulmanos bósnios e forçados a deixar algumas aldeias onde viviam. A cidade foi ocupada pelas Nações Unidas, por capacetes azuis canadianos e foi desmilitarizada, tendo as armas civis sido entregues aos soldados da ONU em março de 1994. O batalhão holandês substituiu os canadianos e criou uma dúzia de pontos de observação em redor da cidade.
Em junho de 1995, os soldados das forças da ONU foram atacados. Quando foi atacado, o continente holandês não respondeu. Simplesmente deixaram o ponto de observação que foi atacado. Numa zona habitada por três mil pessoas, perto do centro de Srebrenica, passado algum tempo, todos os pontos de observação da ONU foram atacados. As forças de paz holandesas, novamente, não ripostaram. Os cidadãos locais dizem que os capacetes azuis não dispararam uma única bala. Dizem que o comandante do batalhão nem sequer visitou os pontos que foram atacados. Já no dia 10 de julho, o comandante holandês pediu ajuda à NATO, ajuda essa que chegou demasiado tarde e sem qualquer capacidade de impedir o avanço das tropas de Ratko Mladic.
Duas bombas. Foram lançadas duas bombas pela NATO em bombardeamentos para tentar travar uma ofensiva. Não atingiram nenhum alvo. Na manhã do dia 11 de julho, as forças de Mladic entraram, triunfantes, na cidade. Mladic convoca o comandante holandês para uma reunião nessa mesma noite e disse ao que vinha. Chega de mortes, quer a rendição total dos muçulmanos bósnios e entrega de armas. Quem não quiser ficar, entre homens e rapazes, pode ir juntar-se às forças de Sarajevo. “Alá não vos pode ajudar, mas eu posso”, terá dito o general sérvio.
“Os autocarros vão chegar e aqueles que quiserem sair vão fazê-lo. Devem manter-se calmos”. A prioridade era evacuar “as crianças e as mulheres”. Nessa altura, 11 de julho, os soldados feridos ajudaram os sérvios a separar os homens bósnios das mulheres e das crianças. A base da ONU teria de ser evacuada. Havia quase quatro mil refugiados no interior da base.
Milhares de muçulmanos bósnios, escoltados por uma centena de homens, militares sérvios bósnios, vencedores de uma batalha, caminharam quilómetros e quilómetros ao longo de campos minados e montanhas até chegarem ao território do exército bósnio muçulmano. Esta fuga ficou conhecida como a Marcha da Morte porque, no final, 8000 homens e rapazes que estavam a fugir pelas montanhas foram fuzilados e enterrados em valas comuns. As imagens foram vistas em todo o mundo ao longo dos últimos trinta anos. Pilhas de cadáveres com os olhos vendados.
Ao longo dos primeiros vinte anos após o crime em massa, considerado genocídio pelo Tribunal Internacional de Justiça, foram encontradas novas valas comuns e foi efetuado um trabalho forense como nunca tinha sido feito, nem mesmo após o genocídio no Camboja. Novos nomes foram sendo acrescentados à lista de vítimas no Memorial de Potocari. Este ano, foram mais sete. E já passaram três décadas.
Dias depois da minha visita a Srebrenica, no jantar do Seminário de Liderança Transatlântica, em Sarajevo, encontrei Svetlana Tito, neta do Marechal Tito que governou a Jugoslávia até 1980:
“Srebrenica é a maior vergonha para todos nós que vivemos nesta região, e suponho que para todos os europeus decentes, talvez também para os membros da comunidade mundial, todos nós falhámos em impedir tal genocídio. Todos nós falhámos em impedir o mal antes que ele acontecesse e eu morrerei com este sentimento de vergonha.”
Svetlana Tito, com nacionalidade bósnia e sérvia, jugoslava até ao fim da vida, morreu este ano, a 22 de março, nos 30 anos de Srebrenica, terra de um massacre, crime contra a humanidade, considerado genocídio pelo tribunal internacional de justiça.