Itália é o país europeu mais afetado pelo surto de Covid-19 e, em algumas cidades, a quarentena começou há quatro semanas. Viver em isolamento não é fácil, mas sair da quarentena pode ser ainda mais complexo, explica o psicólogo Giulio Costa.
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Casalpusterlengo é uma cidade, do norte de Itália, que está em quarentena há um mês, depois de ter sido uma das dez onde surgiu o surto italiano de Covd-19. Foi lá que nasceu Giulio Costa, psicólogo, que está em isolamento desde fevereiro, mas que nem por isso deixou de acompanhar quem dele precisa.
O telemóvel tornou-se numa das principais ferramentas de trabalho de Giulio Costa. É através dele que tem dado apoio psicológico a profissionais de saúde e a muitos dos que como ele estão em isolamento. Foi a partir de casa que Giulio Costa explicou à TSF como está a ser vivida a quarentena nas cidades do Norte de Itália.
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"O sentimento de solidão pode transformar-se num estado depressivo. Os médicos, os virólogos, a medicina não conhecem fenómenos comparáveis. Não há um vírus para comparar", lembra Giulio Costa explicando que os efeitos psicológicos da Covid-19, também não parecem simples: "Do ponto de vista psicológico a situação é ainda mais complexa. Na era moderna tivemos situações traumáticas. Houve terramotos, houve tsunamis e outras catástrofes, o 11 de setembro, terrorismo, migrações. As populações viveram experiências de trauma. Mas nunca viveram uma experiência traumática como um vírus e sobretudo associado a uma quarentena", explica.
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Na Europa ainda não foi desenvolvido nenhum estudo sobre os efeitos psicológicos da Covid-19 nas populações, mas investigações feitas com pessoas que estiveram em quarentena na China apontam para efeitos parecidos aos de um acidente nuclear: "Todos os investigados são unânimes em concordar que a única comparação possível é com Chernobyl", explica Giulio Costa recordando que "o efeito psicológico de Chernobyl, sobre as populações, prolongou-se no tempo e 20 anos depois as pessoas ainda se sentiam responsáveis. Transportavam um sentimento de culpa, sentiam um estigma. Sentiam que tinham uma etiqueta quando os outros ficavam a saber de onde vinham."
Giulio Costa explica que este é um aspeto que preocupa os psicólogos. "Não queremos que os italianos e sobretudo as pessoas da zona onde se deu o primeiro surto passem por esta experiência."
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Para o psicólogo todos os momentos de mudança são também momentos de luto que precisam de rituais para serem ultrapassados. Uma das medidas impostas pela quarentena foi a suspensão de casamentos e funerais. Uma decisão que deixa "vidas congeladas", nas palavras de Giulio Costa.
"Estamos num momento suspenso, que é um tempo de luto, mas para fazer o luto precisamos de ritos. Todas estas pessoas viram sair de casa familiares, pessoas de quem se gostava muito, pessoas que nunca mais vão voltar a ver. Do ponto de vista psicológico é uma situação muito complexa. Porque não os puderam acompanhar nos hospitais, não podem fazer o luto."
O psicólogo explica que o problema se estende para lá dos infetados: "Um grande amigo meu, há poucos dias, perdeu a mãe. Não por causa do novo coronavírus, mas de enfarte. No entanto, ele não pôde ver a mãe. Nem sequer pôde reentrar no apartamento onde ela morava. Portanto é como se alguma coisa estivesse congelada. Para muitas pessoas, muitas perdas ficaram congeladas, bloqueadas no tempo e vai ser preciso processa-las", conta Giulio Costa.
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"Açambarcamentos são uma reação emotiva primária"
Em Portugal, tal como em Itália, as autoridades de saúde lançaram apelos para que se evitassem os açambarcamentos. Em Portugal, tal como em Itália, esses apelos foram ignorados por muitos, uma realidade nada estranha para Giulio Costa que, por essa altura já estava preocupado com o que viria depois.
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"As primeiras reações, quando foram conhecidas as medidas restritivas, foram de pânico. Houve açambarcamentos nos supermercados, mas nós psicólogos sabemos que é uma reação normal. Não estávamos particularmente alarmados com isso, porque é uma reação emotiva primária. De facto, poucos dias depois o comportamento voltou a ser normal", lembra o psicólogo.
Giulio Costa explica o que leva aos açambarcamentos: "Quando há alguma coisa que não conhecem procuram preservar as necessidades primárias - sobreviver e defender-se. Isto é, compro porque preciso de comer, fecho-me e afasto-me do outro porque sei que o outro por causa deste vírus pode ser uma fonte de contágio."
A quarentena ainda não tem fim à vista e com o passar do tempo surgem novos medos, mas apesar da incerteza, Giulio Costa não tem dúvidas: a vida em Codogno não vai voltar a ser a mesma."Agora começa a haver um pensamento sobre o futuro. Quando é que alguém diz que está tudo terminado. Reabramos as escolas, circulemos livremente, voltemos as encher os restaurantes e os cafés", conta o psicólogo italiano.
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"As pessoas interrogam-se: Serei capaz de acreditar nisso? Se antes antes o meu distanciamento social era necessário, e eu talvez até o temesse, agora que posso reencontrar-me com o outro, vou estar à vontade? Estarei protegido quando reencontrar o outro? Já há um pouco o medo do depois. O medo de poder retomar livremente tudo aquilo que abandonámos. Para nós a vida vai ser diferente daquilo que foi até ao dia 21 de fevereiro. Retomaremos o nosso quotidiano, mas de uma forma completamente diferente", conclui.
Até ao momento, cerca de três mil pessoas (2.978) perderam a vida em Itália devido a esta doença, um balanço muito próximo do registado na China (mais de 3.200 mortos), o foco inicial da pandemia.