"Tempestade num copo de água" ou Europa "tem de se preparar"? O que dizem os especialistas sobre a nova doutrina nuclear russa
Especialistas sublinham, no Fórum TSF, que Vladimir Putin é o detentor da "chave da guerra e da paz na Ucrânia". Já a eleição de Donald Trump, nos EUA, vai contribuir para uma "maior perda de prestígio e influência [da ONU] na resolução deste e de outros conflitos que estão em curso"
Corpo do artigo
Numa altura em que se assinalam os mil dias de conflito em território ucraniano, especialistas defendem que a autorização de Vladimir Putin para o uso alargado de armas nucleares, em caso de agressão contra território russo, "não é uma mera declaração ocasional", mas também "não é uma ameaça direta", por isso, a "Europa tem de se preparar para o que vai acontecer". Já o major-general Raul Luís Cunha entende que se "está a fazer uma tempestade num copo de água".
Ouvido no Fórum TSF, Carlos Gaspar, investigador de Ciência Política e Relações Internacionais, explica que a doutrina nuclear é "um documento de referência" russo, pelo que não se trata de "uma mera declaração ocasional", como o país tem hábito de fazer para "declarar linhas vermelhas que no dia seguinte são violadas sem resposta de Moscovo".
"A doutrina nuclear é um documento importante que define um consenso nas elites estratégicas e de política externa da Rússia nesta conjuntura e que alarga os casos em que as autoridades russas consideram justificado o recurso a armas nucleares. É um documento que tem referências que eram previsíveis", esclarece, acrescentando que, apesar disso, esta também "não é uma ameaça nuclear direta feita pelo Presidente Putin".
Ainda assim, o investigador reconhece que esta situação é complexa e entende que é Putin o detentor da "chave da guerra e da paz na Ucrânia".
"Para fazer um acordo é preciso que o Presidente Putin desista de ganhar a guerra e que o Presidente Zelensky desista de ganhar a guerra. Não há nenhum sinal de que qualquer dos dois dirigentes tenha desistido de ganhar a guerra", sublinha.
Carlos Gaspar conclui, por isso, que, se por um lado se "multiplicam os planos de paz da Turquia, do Brasil e da China", assim como "os telefonemas do chanceler Scholz e iniciativas que virão do novo Presidente eleito dos EUA", a verdade é que Vladimir Putin é o único que pode permitir uma resolução do conflito.
A este respeito, o antigo representante especial e chefe da missão das Nações Unidas na República Centro-Africana e no Chade Victor Ângelo, mostra-se pessimista com as últimas evoluções na guerra. A subida ao poder de Donald Trump, que "tem muito pouca consideração pelo sistema político da ONU e pelas relações multilaterais", vai "dificultar ainda mais o trabalho das Nações Unidas".
"Ao nível das Nações Unidas, a chegada ao poder de Donald Trump - e eu espero que me engane, mas penso que será assim -, vai complicar ainda mais as relações multilaterais e o funcionamento do Conselho de Segurança da ONU, contribuindo para uma maior perda de prestígio e influência na resolução deste e de outros conflitos que estão em curso", critica.
Já o especialista em questões europeias Paulo Sande, destaca que "mais do que perguntar o que vai acontecer, a Europa tem de se preparar para o que vai acontecer".
"Perguntar o que vai acontecer, não digo que é uma pergunta de um milhão de dólares, mas é uma pergunta com uma resposta muito complexa, não vale a pena tentar adivinhas", defende.
Paulo Sande argumenta que a Europa "já tem preparado um plano a nível económico de retaliação", mas do ponto de vista militar, esta gestão "é muito mais difícil".
"Para que essas coisas possam ser relevantes e eficazes, é preciso ter uma capacidade que a Europa neste momento não tem. É importante para a Ucrânia que a Europa se mantenha nesta conversa e ação", avança.
Sobre a ameaça nuclear que foi intensificada esta terça-feira, o especialista insiste que o continente europeu não pode "perguntar se vai ou não acontecer": "É perguntar como é que será a resposta se acontecer."
Esta opinião não é partilhada pelo major-general Raul Luís Cunha, que considera que se está "fazer uma tempestade num copo de água", admitindo que "até os próprios russos" o possam estar a fazer "deliberadamente".
"A Rússia já tinha feito a declaração de que, no caso de uma ameaça existencial, utilizaria o seu arsenal nuclear. Neste momento, este alargamento só é feito no sentido em que, se um país ou um aliado de outro não-nuclear, mas esse sendo nuclear, se houver um ataque a território russo, poderá a Rússia retaliar com a utilização de armamento nuclear. Isto não tem um grande significado em termos da situação", entende Raul Luís Cunha, que desempenhou funções na NATO e foi conselheiro-militar do representante especial do secretário-geral da ONU no Kosovo.
O Presidente da Rússia, Vladimir Putin, aprovou esta terça-feira alterações à doutrina nuclear russa, autorizando o uso alargado de armas nucleares. De acordo com a agência Reuters, o decreto assinado por Putin altera os critérios que permitem o recurso a armas nucleares por parte da Rússia.
O documento "de planeamento estratégico" inclui a "posição oficial sobre a dissuasão nuclear", "define os perigos e ameaças militares contra os quais se pode atuar com dissuasão nuclear" e estabelece que um ataque nuclear por parte de Moscovo poderá ser considerado em resposta a "uma agressão contra a Rússia e os seus aliados por parte de qualquer Estado não nuclear apoiado por um Estado nuclear" ou a um ataque aéreo em grande escala com armas não nucleares, incluindo drones. "Entre as condições que justificam o uso de armas nucleares está o lançamento de mísseis balísticos contra a Rússia", lê-se.
O decreto, publicado no portal de documentos legais das autoridades russas, visa "melhorar a política estatal no domínio da dissuasão nuclear" e contempla a sua entrada em vigor a partir da assinatura de Putin.
"Foi necessário adaptar os nossos fundamentos à situação atual", explicou o porta-voz da Presidência russa, Dmitri Peskov, diante do que Putin considera serem "ameaças" realizadas pelo Ocidente contra a segurança da Rússia.
A decisão surge depois de Joe Biden ter autorizado pela primeira vez a Ucrânia a utilizar mísseis de longo alcance norte-americanos contra a Rússia. A autorização de Washington foi revelada no domingo pelos meios de comunicação social norte-americanos, após mais um fim de semana de ataques russos em grande escala e mortíferos contra a Ucrânia, apenas algumas semanas antes da transferência de poder do Presidente cessante para o republicano Donald Trump e depois da confirmação da mobilização de milhares de soldados norte-coreanos para combater ao lado das tropas de Moscovo.
