Terroristas recrutam meninas com base na "inteligência" e "pressão dos pares", mas há "também as que foram raptadas"
Há mais de 18 anos, Halima Mohamed luta pelos direitos das mulheres e meninas na África Oriental. Co-fundadora e diretora do Coast Education Centre, no Quénia, trabalha para prevenir, combater e tentar sarar as feridas do extremismo violento. Procura compreender por que razão as jovens se juntam ao grupo Al-Shabaab
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A conceituada ativista queniana representa as organizações da sociedade civil da região costeira no Conselho Nacional para ONGs do Quénia como diretora e diretora da Região Internacional dos Grandes Lagos (ICGLR) no âmbito do Pilar da Paz e Segurança. Halima Mohamed membro da WASL, Aliança das Mulheres para a Liderança em Segurança. Foi uma das 23 mulheres que se reuniram em Lisboa, numa iniciativa organizada pelo Centro Internacional de Diálogo – KAICIID, em parceria com o Ministério dos Negócios Estrangeiros de Portugal (MNE) e a Rede Internacional de Ação da Sociedade Civil (ICAN), sob o lema «Promovendo a Paz Inclusiva: Liderança Feminina na Construção da Paz e no Diálogo». Entrevista ao programa O Estado do Sítio, na TSF, este sábado depois das 12h00.
Halima Mohamed, o que acha desta ideia de reunir as histórias, as jornadas e as conquistas de 23 mulheres construtoras da paz para publicar em livro?
A ideia de nos reunirmos aqui hoje é basicamente para recordar e reconectar-nos como Mulheres Construtoras da Paz. A nossa jornada começou em 2015, quando a WASL foi formada. Então, fomos reunidas pela ICAN, que está a liderar o movimento. E isso vem de mulheres que estão a trabalhar para lidar com a violência e os conflitos, mulheres que estão a trabalhar com militarização, igualdade de oportunidades, extremismo violento, violência de género, tudo isso nos foi reunindo para escrever as nossas histórias que nunca foram ouvidas.
Estas são as vozes não ouvidas das mulheres construtoras da paz. Como é o seu trabalho no Quénia?
No Quénia, trabalho para o Coast Education Centre. É uma organização liderada por mulheres. Trabalha para amplificar as vozes das mulheres e das raparigas. Trabalho com aconselhamento. Basicamente, é apoio psicossocial, apoiando mulheres cujos maridos e filhos foram atraídos para se juntarem ao Al-Shabaab, que é um grupo terrorista. E também apoio meninas que também se juntaram aos grupos terroristas. Então, o meu trabalho basicamente é oferecer aconselhamento, oferecer uma mão a essas mulheres, para que possam conversar sobre o assunto. Ver os sorrisos delas é o que me faz acordar cedo de manhã e tentar apoiá-las e trabalhar com elas. Ao mesmo tempo, aquelas que estão a ser rejeitadas pela sociedade, tentam encontrar um lar seguro para essas mulheres, para que possam ser resgatadas e apoiadas pela sua organização.
Quais são os principais problemas que elas enfrentam, mulheres e meninas? Pelo que li, casamentos infantis, casamentos arranjados, mutilação genital feminina, epidemia de SIDA, cuidados de saúde maternal precários, e assim por diante...
Basicamente, para as mulheres com quem trabalho, especialmente para as meninas, elas geralmente acabam em casamentos arranjados às pressas, aqueles em que uma menina de 20 a 25 anos quer-se casar, ou a família supostamente encontrou-lhe um noivo. Mas eles não conhecem o histórico desse noivo. De uma forma ou de outra, essa menina acaba sendo recrutada na fonte de casamentos. Então, para nós, como podemos evitar esses casamentos apressados? Cabe aos pais entenderem que, se vão casar a sua filha, devem entender de onde vem o noivo, entender o histórico do noivo. Por mais que os xeques geralmente indiquem noivos potenciais às famílias, não se pode simplesmente deixar por isso mesmo só porque o xeque conhece a pessoa. Mais uma vez, cabe a vocês questionar de onde essa pessoa vem. E então, para as mulheres cujos filhos e maridos foram atraídos, o que fazemos por elas? Oferecemos aconselhamento, para elas e também para os seus filhos, para que possam ser incorporados na comunidade, em vez de serem rejeitados.
E trabalham também com os professores?
Sim, também trabalhamos com professores de madrasas. Estas são instituições islâmicas dentro das nossas comunidades, porque também temos pessoas que estão a ser atraídas para se juntarem ao al-Shabaab. Mas, mais uma vez, para nós, a questão é: como podemos apoiá-los para que avancem com objetivos de sustentabilidade? Por mais que sejam professores, também estão a tentar iniciar pequenos negócios como atividade secundária.
Por que razão tantas jovens quenianas se juntam ao al-Shabaab?
Temos diferentes aspetos. Temos aquelas que estão a ser atraídas por causa da sua inteligência, porque frequentam universidades e têm inteligência e qualificações. Há aquelas que estão a ser atraídas por questões relacionadas com bolsas de estudo, e aquelas que estão a ser atraídas por causa da pressão dos pares, e depois também temos aquelas que foram raptadas. Portanto, temos diferentes fases de como as pessoas estão a ser atraídas para se juntarem ao al-Shabaab.
Tem algum tipo de dados sobre isso?
Os dados ainda não foram divulgados. O nosso país está a trabalhar numa nova estratégia que será lançada em breve e que, na verdade, incorpora a sociedade civil, o setor privado, tudo em um, para poder conter a questão do extremismo violento.
Como é que o mundo pode ajudar o Quénia a trabalhar nessas questões e a construir um futuro melhor para as raparigas e mulheres?
Bem, apoiar o meu país é basicamente garantir que temos uma nova estratégia em vigor. E estas estratégias só podem funcionar com o governo mas também com a sociedade civil. Portanto, o mundo pode apoiar a sociedade civil no nosso país para que seja capaz de defender e conter o extremismo violento, porque, no fim das contas, quando uma mãe não está bem, toda a família ou nação não está bem. Portanto, para nós, trata-se de trabalhar com as mães para garantir que conseguimos conter esta ameaça no nosso país.
Pensa que esse extremismo violento tem aumentado ou está, de alguma forma, como dizer, contido neste momento? Está a aumentar ou está, de alguma forma, contido?
Por enquanto, diria que, olhando para os últimos dois anos até agora, a tendência mudou, digamos que reduziu. Há muitas medidas que as pessoas estão a implementar, há muitas medidas que a sociedade civil está a implementar para conseguir conter isso. E isso é porque o trabalho entre o governo nacional e a sociedade civil, essa relação e colaboração, é o que tem funcionado para permitir que essa ameaça seja tratada. E a sociedade civil garantiu que esse extremismo violento não aumenta na nossa localidade. A única coisa que aumentou foram os gangues ilegais. Os jovens do país estão, na verdade, a aterrorizar as pessoas da sociedade.
Mencionou que trabalha com o governo nacional e também com a sociedade civil. E qual é a relação, no âmbito desse trabalho, com as autoridades locais? Porque, às vezes, os municípios e os governos regionais também têm muito a dizer sobre essas matérias...
Sim. O Quénia tem 47 condados. Eu pertenço ao 001, que é Mombaça. Mombaça introduziu uma lei de resiliência. A lei de resiliência hoje em Mombaça está, na verdade, a analisar como podemos conter o extremismo violento. Temos 47 planos de ação contra o extremismo violento nos condados do meu país. E esses 47 planos de ação dos condados são apoiados pela estratégia nacional. Assim, a partir do governo do condado - o mandato de segurança ainda está sob o governo nacional - mas o governo do condado está autorizado a formar a autoridade policial do condado, onde os agentes de segurança do governo nacional podem fazer parte da autoridade policial do condado. Portanto, os condados ainda não estabeleceram isso. E é isso que falta no país hoje.