"Todos vamos poder escolher como queremos viver e como queremos morrer. É uma grande conquista"
A lei é aprovada esta quinta-feira no Congresso dos Deputados, depois de já ter passado pelo Senado. Depois da sua publicação no Boletim Oficial do Estado tem três meses para entrar em vigor, o que deverá acontecer em junho.
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Maribel Tellaetxe soube que tinha Alzheimer com 63 anos. Tinha vivido a doença de perto, com a mãe primeiro, e a sogra depois e, depois do diagnóstico, Maribel só tinha uma certeza. "Sabia que chegado a um determinado ponto de deterioração física e ou mental não queria continuar a viver", lembra o filho, David Lorente. "Se perdia a autonomia, se perdia a capacidade de se expressar, ou de amar, ou de nos reconhecer... um desses motivos era suficiente".
É David quem conta a história de Maribel, porque ela morreu em 2019, 13 anos depois de ter sido diagnosticada. "Nos últimos dois anos tudo era sofrimento tanto físico como psicológico porque os poucos momentos de consciência que tinha era como uma claustrofobia, estava desorientada no tempo e no espaço e víamos que sofria constantemente", explica.
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Maribel pediu várias vezes a eutanásia mas, nesse momento, a prática estava proibida em Espanha. "Quis suicidar-se porque como não vinha a lei preferia morrer quando ainda tinha vontade de viver do que saber que podia chegar a esse grau de deterioração sem que lhe pudéssemos aplicar a eutanásia. O meu pai convenceu-a a não o fazer com a esperança de que a lei chegasse a tempo".
Os filhos e o marido prometeram-lhe então que não deixariam de lutar pela aprovação da eutanásia. Não chegou a tempo de lhe aliviar o sofrimento mas hoje, o Congresso dos deputados dá luz verde à lei depois de já ter sido aprovada no Senado.
"É uma lei com muitas garantias, bastante ampla mas estipula em que casos se pode aplicar a eutanásia e para nós a única casuística que devia haver é a própria vontade do paciente", analisa David. "Depois de tudo o que lutámos pela nossa m4ae, quem somos nós para dizer a alguém que não pode pedir a eutanásia porque não está assim tão mal. Isso é uma decisão privada e pessoal".
Muitas garantias
De acordo com o documento, a eutanásia poderá ser pedida por pessoas maiores de idade, com nacionalidade espanhola ou com residência legal no país, que sofram de "doença grave e incurável ou incapacitante". Os pacientes deverão ser informados por escrito do seu processo médico e das alternativas à eutanásia, nomeadamente no que respeita aos cuidados paliativos. Para que o processo arranque, os pacientes terão que apresentar ao seu médico dois pedidos por escrito num intervalo de 15 dias.
A lei estabelece ainda que cada comunidade autónoma terá uma Comissão de Avaliação e Seguimento que deve controlar todo o processo, desde o seu início. Esta Comissão terá nove dias de prazo para decidir se o pedido cumpre todos os requisitos e pode avançar.
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Haverá um segundo controlo, a posteriori, para avaliar todo o procedimento. Os médicos têm também direito de objeção de consciência. "É uma boa lei, mas o controlo prévio preocupa-nos", diz Fernando Marin, presidente da Associação Morrer com Dignidade. "Em algumas comunidades autónomas podia ser utilizado para boicotar a lei. Achamos que um controlo posterior oferece as garantias suficientes, como demonstram os casos da Holanda ou da Bélgica, onde, em 20 anos não se deu um único caso de homicídio".
Marin defende também que os menores deveriam ter sido incluídos na lei. "Preferíamos que tivessem entrado os menores porque mesmo que quantitativamente sejam poucos, qualitativamente é importante. Há situações muito complicadas", explica.
A eutanásia deverá ser levada a cabo numa instalação hospitalar ou no domicílio do paciente. Fora da lei está a possibilidade de ser aplicada em lares de idosos, pelo impacto que poderia ter nos restantes utentes.
O Vox já avisou que vai recorrer ao Tribunal Constitucional e o PP ainda não descartou fazer o mesmo. Ainda assim David Lorente confia em que a decisão seja diferente da de Portugal esta semana. "Em principio foi redigida de forma a não entrar em conflito com a Constituição, teve-se muito cuidado com isso. Mas, claro, se o PP e o Vox recorrerem ao Constitucional, no fim a última palavra é do Tribunal... mas somos otimistas".
Apoio social
Apesar da divisão política, a eutanásia é um tema que gera um apoio amplo na sociedade espanhola. Segundo as últimas sondagens do Centro de Investigações Sociológicas, que não inclui uma pergunta sobre a eutanásia nos seus estudos desde 2009, mais de 70% da população apoia a sua legalização. Uma sondagem mais recente da empresa Metroscopia, em 2019, revela que 89% dos espanhóis apoiam a medida.
Trata-se, nas palavras de Marin, de um avanço social necessário para retirar a eutanásia da clandestinidade e dar aos cidadão o que a sua associação persegue há anos: uma morte digna. "É o primeiro passo para mostrar à sociedade que a morte voluntária é segura, que a morte voluntária é um direito e que as pessoas, no geral, somos suficientemente responsáveis para utilizar a liberdade com essa responsabilidade", sublinha.
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Se tudo correr como previsto, depois da aprovação no Congresso, a lei é publicada no Boletim Oficial do Estado e tem três meses para entrar em vigor, o que deverá acontecer em junho.
Para David e o resto da família, o dia de hoje representa "uma vitória, depois de tantos anos de luta", e vem como um suspiro de alívio e o sentimento de uma promessa cumprida. "Sei que a minha mãe estaria muito feliz e muito orgulhosa. Chega tarde, mas conseguimos. Por fim, conseguimos. A partir de agora todos vamos poder escolher como queremos viver e como queremos morrer e isso é uma grande conquista da sociedade".