Amnistia Internacional denuncia média de 10 mortes diárias nas prisões sírias desde o início do conflito no país, em 2011. Investigação descreve catálogo de horrores relatado por 65 sobreviventes.
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"Fizeram-me subir para cima de um barril, ataram-me os pulsos e penduraram-me no ar. Tiraram o barril. Trouxeram três paus e bateram-me. Depois vieram os cigarros. Apagavam-nos em todo o meu corpo. Era como se uma faca me estivesse a cortar".
Este é apenas um dos muitos relatos obtidos pela Amnistia Internacional (AI) numa investigação sobre as práticas nas prisões sírias desde o início do conflito no país, em 2011.
A organização não-governamental (ONG) de defesa dos direitos humanos escutou os relatos de 65 sobreviventes para descrever um cenário de horror nos estabelecimentos prisionais, onde a tortura é uma prática comum, levada a cabo pelas forças governamentais de Bashar al-Assad.
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A AI estima que entre 2011 e 2015, perderam a vida nas prisões sírias 17.723 pessoas, vítimas de tortura e de outros tratamentos desumanos dados aos detidos. A frieza dos números mostra uma média de 300 mortes mensais - ou uma morte a cada duas horas e meia. E a ONG considera que estes números são conservadores: "com dezenas de milhares de pessoas nas prisões em toda a Síria, o total poderá ser muito maior", lê-se no documento.
Pedro Neto, diretor executivo da AI em Portugal, afirma que o número é "alarmante e conservador", porque "os desaparecimentos são em número muito mais elevado. Não sabemos onde estão muitas pessoas, o que nos leva a temer que o número de mortos nas prisões possa ser muito maior".
O relatório, intitulado "It breaks the human: Torture, disease and death in Syria's prisons" (numa tradução livre: "Quebra a barreira da humanidade: tortura, doença e morte nas prisões da Síria") documenta aquilo que a ONG caracteriza como "crimes contra a humanidade cometidos pelas forças governamentais".
O documento descreve as experiências de "milhares de detidos através dos relatos de 65 sobreviventes que denunciam condições desumanas e abusos flagrantes" dos direitos humanos em estruturas operadas pelas agências judiciárias da Síria e na prisão militar de Saydnaya, nos arredores de Damasco.
Muitos relataram mortes de prisioneiros e alguns contaram terem sido mantidos em celas onde também estavam cadáveres de outros presos.
A "festa de boas vindas": espancamentos e choques elétricos
A maioria dos sobreviventes relata abusos que começam logo nas detenções e durante as transferências para as prisões. E quando os detidos lá chegam, espera-os uma "festa de boas vindas": um ritual que inclui espancamentos severos, com o uso frequente de barras metálicas, cabos elétricos: "Tratam-nos como animais", relata um sobrevivente.
"Querem retirar a humanidade às pessoas. Vi rios de sangue. Não têm problemas em matar seja em que momento e lugar forem", denuncia um advogado detido perto de Hama.
Para as mulheres ainda é pior: para além de tudo isto, há violações levadas a cabo por guardas prisionais.
Os relatos recolhidos pela AI descrevem os métodos de tortura usados como técnicas de recolha de "confissões" ou como castigos. Métodos comuns aplicados aos detidos são o "dulab" (contorcer o corpo da vítima de forma a caber dentro de um pneu) ou o "falaga" (flagelar as solas dos pés), para além dos choques elétricos, violações e outros tipos de violência sexual, extração de unhas, serem escaldados em água a ferver, e servirem de cinzeiro para apagar cigarros.
O diretor executivo da AI em Portugal, Pedro Neto, fala também de sexo forçado entre detidos, e de casos em que os presos comem "cascas de bananas e caroços de azeitona" para não morrerem à fome.
A AI construiu ainda um modelo virtual de uma prisão síria que pode ser consultado aqui.
E quem são os detidos? Pessoas comuns
Dos 65 sobreviventes de tortura entrevistados na investigação, 54 são homens (um deles tinha menos de 18 anos quando foi preso) e 11 são mulheres. Cinco foram membros das forças militares sírias que no momento da detenção estavam envolvidos em atividades que podiam ser entendidas como de suporte a um grupo não armado.
A vasta maioria dos entrevistados são civis que não tinham, ao que a AI conseguiu saber, qualquer relação com atividades militares. Trata-se de pessoas de todos os quadrantes e profissões: há contabilistas, advogados, professores, estudantes, académicos, engenheiros, eletricistas, arquitetos, pequenos empresários, gestores de ginásios, assistentes de vendas, escritores, jornalistas, atores, pessoal de organizações não-governamentais, e agricultores.
Um trabalho de parceria
A investigação da Amnistia internacional contou com a parceria de "um consórcio de organizações", explica Pedro Neto. O diretor executivo da AI em Portugal relata um trabalho conjunto com entidades que trabalharam dados estatísticos na Síria, e ainda uma rede de organizações sírias de defesa dos direitos humanos. O trabalho obtido nessa parceria complementa as entrevistas aos 65 sobreviventes que está na base do relatório.