"Tu sabes que alguém vai matar o teu povo. O que não vês é que também és um assassino"
Foi há seis meses que irrompeu a Segunda Guerra de Nagorno-Karabakh. Um conflito de 44 dias, que opôs a Arménia ao Azerbaijão e terá feito perto de 10 mil mortos. A TSF escutou as vozes de jovens dos dois países. Será esta a geração que segura a chave para a paz?
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Minas Minasyan tem apenas 25 anos, mas a guerra é aquilo que sempre conheceu. Já nasceu num país em conflito. É um "filho" da Arménia, uma antiga república soviética com feridas abertas há muitos anos.
"Quando és arménio, quando nasces com esta identidade, tens esta dor... Tu sabes que é suposto ser assim. É suposto que alguém apareça e mate o teu povo. O teu povo vai ser morto. O que tu não queres ver é que tu também és um assassino", admite Minas.
Do lado de lá da fronteira, vive Shabnam Safarova. Tem mais cinco anos do que Minas, mas também quase só conhece o conflito. Sempre viveu num Azerbaijão em sobressalto.
Não o desejo nem aos meus piores inimigos. A guerra é tragédia. A guerra é caos
"Viver num país em conflito não é fácil. Tu não consegues aproveitar a vida profundamente", desabafa Shabnam. "A guerra é tão má, eu não a desejo nem aos meus piores inimigos. A guerra é tragédia. A guerra é caos."
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Podem estar em lados opostos da linha, mas Minas e Shabnam conhecem a mesma realidade.
Ele, na Arménia. Ela, no Azerbaijão. Vivem a mesma guerra: a luta pelos territórios de Nagorno-Karabakh, que se arrasta há mais anos do que aqueles que conseguem recordar.
"Estes territórios são internacionalmente conhecidos como Nagorno-Karabakh. As pessoas que lá vivem também lhe chamam Artsakh. A história deste conflito começou há muito tempo", começa por explicar Minas à TSF. "Este é um território que é há muito habitado por arménios e há sempre esta discussão sobre a quem é que pertence. Ambos os lados dizem que pertence ao país deles, porque arménios e azeris vivem lá. Durante o período soviético - quando a Arménia e o Azerbaijão eram repúblicas da URSS -, o território foi atribuído ao Azerbaijão."
Com a dissolução da União Soviética, o território foi atribuído ao Azerbaijão, mas aquelas terras eram habitadas pelos dois povos. Os arménios de Nagorno-Karabakh decidiram, em 1988, proclamar a sua independência face ao Azerbaijão e a tensão na região começou a crescer. Uma guerra sangrenta eclodiria no inverno de 1992.
"Os arménios de Karabakh decidiram ser independentes do Azerbaijão, porque havia muita perseguição. Então, tentaram tornar-se numa república autónoma dentro do Azerbaijão - e isso é um ponto-chave quando olhamos para este conflito", conta Minas.
É assim que reza a história na Arménia. Mas, como em todas as histórias, há mais do que uma versão dos acontecimentos.
Shabnam garante que "o problema foi quando a comunidade arménia em Karabakh decidiu que Karabakh era território da Arménia e quis ser independente - e juntar-se à Arménia". "Isso é ocupação", defende a jovem azeri. "A comunidade arménia de Karabakh e o Governo da Arménia não querem aceitar a integridade territorial de Azerbaijão. Isso é um problema."
Shabnam sempre esteve no centro da história. Ela é de Karabakh. "Eu nasci em Karabakh, os meus pais nasceram em Karabakh, os meus avós viviam em Karabakh", declara, recordando tempos que lhe parecem quase imaginados, em que azeris e arménios costumavam viver lado a lado em tranquilidade. "Eu lembro-me de que tínhamos vizinhos arménios e tínhamos boas relações com eles. Mas, passado alguns anos, eles acharam que Karabakh pertencia apenas aos arménios."
Após mais de 30 mil mortos e um milhão de deslocados, os dois países chegariam, em 1994, sob a mediação da Rússia, a um cessar-fogo. Mas nunca a um acordo de paz. E as marcas da guerra ficam.
"As minhas memórias são de sangue, de cadáveres nas ruas...", recorda Shabnam. "Eu perdi a minha infância, infelizmente. Mudei de escola cinco vezes. Eu não me lembro dos meus colegas, dos nomes deles, do aspeto deles,... porque eu tinha de mudar de escola, de casa, de vida, a toda a hora, e foi traumático para mim."
As minhas memórias são de sangue, de cadáveres nas ruas. Perdi a minha infância
O cessar-fogo foi violado, de parte a parte, ao longo dos anos. Mas, no verão de 2020, a situação escapou totalmente mesmo ao controlo. Em setembro, os dois países declaram lei marcial e inicia-se a Segunda Guerra de Nagorno-Karabakh. Cada lado acusa o outro de ter começado.
"Vemos soldados a morrer na fronteira, e vemos as idades deles, o quão jovens são...", lamenta Minas Minasyan. "Se eles [as autoridades arménias] quiserem, podem levar-te para a guerra. Sem dúvida. A lei dá ao Governo o direito de mobilizar pessoas para combater. É o que acontece, tanto na Arménia como no Azerbaijão. Eles levam pessoas", conta à TSF.
"Há civis a serem mortos... Não interessa quem começou. Não há justificação quando se matam pessoas pacíficas", defende o jovem arménio, que admite, no entanto, que as coisas não são "preto no branco". "Quando uma guerra começa, há crimes dos dois lados. Infelizmente, é isso que vejo."
Há civis a serem mortos... Não interessa quem começou. Não há justificação
A questão complica-se porque, na realidade, há mais do que dois lados nesta guerra. Desde o início que duas potências maiores, Rússia e Turquia, estão por trás daquilo que se passa no campo de batalha.
"Quando se olha para as declarações feitas pelo [Presidente da Turquia] Erdogan, para as ideias dele sobre uma PanTurquia... Vê-se que esta não é apenas uma guerra entre dois países pequenos. Não é só mais uma guerra. Não é só mais um conflito em que há pessoas a matarem-se. É algo maior, infelizmente", declara Minas.
Não é apenas uma guerra entre dois países pequenos. É algo maior, infelizmente
"A Rússia está a vender armas tanto à Arménia como ao Azerbaijão. Por isso, dá para ver como este jogo se joga...", ironiza o jovem.
Desde o início desta segunda guerra que os arménios acusam a Turquia de receber apoio militar. Um apoio que os azeris não negam, mas garantem ser apenas "moral".
"Compramos armas à Turquia, à Rússia, à Bielorrúsia,... Isso não significa que estes países estejam a apoiar militarmente o Azerbaijão", retorque Shabnam.
"Nós não precisamos de ajuda para lutar. A população do Azerbaijão é de 10 milhões, a população da Arménia é de 3 milhões; o orçamento militar do Azerbaijão é maior do que o orçamento total do Governo da Arménia. Para que precisaríamos de qualquer ajuda?", atira.
Tanto não precisaram, que venceram. Assim foi. Depois de três cessar-fogos falhados. Ao fim de 44 dias de luta, a guerra termina a 10 de novembro, com uma vitória do Azerbaijão.
O primeiro-ministro da Arménia, Nikol Pashinyan, aceita a derrota e assina um acordo ditado pelo presidente do Azerbaijão, Ilham Aliyev, e pelo Presidente russo, Vladimir Putin.
"Não há vencedores na guerra. Não é eu não querer admitir que o Azerbaijão venceu a guerra; o facto é que a Arménia perdeu - e houve uma espécie de dupla derrota: primeiro, na guerra, e depois, a situação política dentro do país. Quanto ao Azerbaijão, a questão é que, tecnicamente, ganhou a guerra, mas, com o sistema corrupto que tem, fez do Presidente Aliyev um herói, garantindo que ele vai manter-se no trono durante mais tempo do que aquele que ficaria se não tivesse havido guerra", analisa Minas.
O jovem resume o sentimento da população arménia. Foram levados para o campo de batalha. Fizeram-nos crer que valia a pena lutar, que iam recuperar as terras deles, que iam ganhar. Sentem-se traídos.
"O Governo da Arménia é uma cambada de populistas. Fez esta propaganda de que íamos ganhar - o que, claro, não poderia estar correto, quando não temos o poderio militar que tem o Azerbaijão e o parceiro de crime dele, a Turquia. Só usaram estas ideias nacionalistas para poderem agarrar-se ao poder por mais algum tempo", nota. "Na realidade, o número de vítimas é o dobro daquele que tinham dito. Anunciaram que duas mil e tal pessoas tinham morrido, e agora sabemos que, do lado da Arménia, foram quatro mil e tal, quase cinco mil."
"As pessoas estão indignadas. Quando houve a opção, pelo menos no início, de chegar a um acordo de paz ou algo assim, eles podiam ter feito isso. Mas não fizeram", Minas condena. "Isso é que é triste. Não é termos perdido muitas terras. É haver mais de quatro mil pessoas, do lado da Arménia, que foram mortas - e outras tantas do lado do Azerbaijão."
Isso é que é triste. Não é termos perdido muitas terras. É haver mais de quatro mil pessoas que foram mortas
O acordo estabelecido dita que os soldados russos irão patrulhar a zona durante, pelo menos, os próximos cinco anos, para "manter a paz" na região. E, nessa missão, a Rússia irá contar com o apoio da Turquia.
Perante os traumas passados, de um genocídio que ainda hoje os turcos não reconhecem, os arménios têm medo. "Sentem-se perdidos e também sentem que foram atraiçoados e que estão a perder a soberania. O que até pode acontecer a um país pequeno como a Arménia, que está, basicamente, isolado", comenta Minas.
"Não sabemos o que irá acontecer daqui a uns anos. O acordo foi uma coisa muito abstrata, que pode ser interpretada de muitas formas. A Turquia tem os interesses dela nestas terras, claro, e a Rússia encontrou uma ótima oportunidade para ter mais controlo sobre estes territórios", sugere.
Os ecos quase inaudíveis da comunidade internacional sobre este problema deixam a região mais vulnerável. Minas critica a falta de ação do resto do mundo.
O que podemos fazer se a comunidade internacional não reage?
"O que podemos fazer se a comunidade internacional, basicamente, não reage? Se a União Europeia agisse de alguma forma, isso ia prevenir a intervenção da Rússia - que, pelo que podemos ver até agora, não está a salvar ninguém, está só a ficar com terras", refere.
A população arménia de Nagorno-Karabakh deixou, em massa, a região, rumo à "terra-mãe". Muitos foram aqueles que pegaram fogo às próprias casas, para não as deixarem ao "inimigo". Entre aqueles que ficaram, surgem na internet vídeos de decapitações às mãos de soldados azeris. O ódio cresce.
"Quando há tantas mães cujos filhos foram mortos... Acho que, se vives numa sociedade assim, também ficas com o trauma. O ódio também cresce em ti. E as pessoas estão muito desesperadas", desabafa Minas.
Quando há tantas mães cujos filhos foram mortos... O ódio também cresce em ti
"Perder pessoas - e tão jovens! -, vidas destruídas,... é mesmo uma pena. Mas o que podemos fazer? Infelizmente, não havia outra maneira de resolver este problema", defende Shabnam.
Mas, mesmo com o nacionalismo, a propaganda, os preconceitos que lhes são incutidos desde a infância... Esta é a geração millennial, a geração digital. Fará isso alguma diferença? Poderá ser esta a geração com a chave para a paz?
"Quando fazemos essa pergunta numa fase muito ativa e acesa do conflito, as respostas não vão ser satisfatórias", a jovem azeri Shabnam. "Acho que precisamos de um processo muito longo para tornar o Cáucaso pacífico de novo."
"Aquilo que desejo para os nossos vizinhos, para a Arménia, é que sejam lógicos e compreendam que este conflito não é bom para eles. Porquê perderem as vidas dos seus jovens, porquê perderem o bem-estar da sua população? Só por sonhos irrealistas?", questiona. "Eu espero que o Cáucaso seja um local de paz neste mundo. Nós precisamos disso."
Esta guerra de muitos anos criou uma enorme barreira entre estas duas nações
Também Minas espera "que não haja mais ação militar" e manifesta a esperança de que os dois países "trabalhem juntos para tornar os seus povos tolerantes um com o outro".
"Esta guerra de muitos anos criou uma enorme barreira entre estas duas nações. Eu espero que o regime do Azerbaijão mude, a certa altura, e que possamos, pelo menos, falar sobre paz", diz. "Vou fazer figas."
