Um mês depois da catástrofe em Valência: “É pior agora do que no dia em que vês que está tudo destruído”
As zonas afetadas ainda estão muito longe de recuperar a normalidade. Os moradores queixam-se de que as ajudas demoram a chegar
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Um mês depois, o cenário de destruição massiva permanece. As piores inundações do século na Comunidade Valenciana, deixaram pelo menos 222 mortos e cinco desaparecidos e um rasto de devastação que ainda não se apagou.
É certo que lama já desapareceu da maior parte das ruas das localidades afetadas, e que as montanhas de carros foram diminuindo até os veículos serem rebocados para áreas mais retiradas, deixando uma vista mais desafogada no centro das povoações, mas certas zonas continuam a oferecer imagens de difíceis de encaixar um mês depois. Há muito pó, montanhas de escombros que ainda não foram levados, e zonas ainda alagadas. Recuperar a normalidade parece uma utopia.
“Há muita porcaria ainda. As pessoas continuam a tirar coisas das casas quase em todas as ruas, porque dentro das casas é um caos. Há muitas garagens ainda inundadas... Há muita agonia, muito stress, impotência... pessoas que perderam tudo...”, diz Marisol Gallardo, moradora em Massanassa.
Marisol considera-se uma afortunada porque só perdeu dois carros. Os vizinhos de baixo perderam a casa, o carro e o negócio familiar, uma pizaria que, ainda não sabem ainda se vão voltar a abrir. “Estamos centrados em recuperar a casa. A pizaria é secundaria... estamos um bocadinho desiludidos e o mais certo é não voltarmos a abrir”, conta Aida.
Aida lembra que foi apenas ao quarto ou quinto dia depois da tragédia, quando a ajuda começou a chegar ali, em forma de militares e maquinaria pesada para limpar as ruas e as casas e retirar escombros com maior rapidez. E em quase todas as ruas de Massanassa a lama e os carros amontoados desapareceram.
“A lama já quase não é um problema e o que há agora mesmo é pó. Muito pó provocado pelo movimento constante dos carros, que levam escombros. Há zonas concretas onde há montanhas e montanhas e montanhas...”, explica Aida. A partir dessa altura as autoridades sempre estiveram no terreno “e as tarefas avançaram mais depressa, mas também havia muita desorganização. Havia muitos voluntários que queriam ajudar e não se aproveitaram essas mãos porque não havia quem os organizasse”.
“Houve uma altura em que perdemos a noção do tempo”, lembra Marisol. “Os dias eram todos iguais, já nem me lembro quando começou a chegar aqui ajuda oficial”. O que ainda tem bem presente na memória são as primeiras horas do dia 30, o dia depois da catástrofe.
“Não havia nada, não tínhamos sequer pás, era tudo com a vassoura e a pá de recolher o lixo. Gente da terra, gente que se conhece, ia casa por casa, para ver se as pessoas estavam bem... as pessoas a pedirem socorro, auxílio, ‘não nos deixeis’ e tinham que os deixar para ir à casa seguinte e ver como estavam. Partiam as portas como podiam, tiravam os carros como podiam para poder salvar as pessoas idosas que não podiam sair de casa”, conta emocionada.
O trauma vai ser difícil de esquecer. Sobretudo porque é agora, quando tudo passou e a vida devia voltar a ser normal, que o choque é maior. “Nos primeiros dias não paras de tirar lama, tens muita atividade e o primeiro e único pensamento é ‘vamos sair desta’”, diz Aida. “Mas passou um mês, a situação não melhora e vês tudo de forma mais clara, aquilo que perdeste... Está a ser muito, muito difícil. Acho que agora é pior do que no dia que abres a porta e vês que está tudo destruído”.
À espera de ajudas
Durante este mês, o Governo já aprovou três pacotes de ajudas para a reconstrução, que rondam os 16.000 milhões de euros, mas o processo é lento e todos se queixam da falta de respostas. Sobretudo quando, à volta, há casas para reconstruir, empresas que desapareceram, escolas que ainda não abriram e vidas que ficaram suspensas.
Entre as últimas 60 medidas anunciadas esta semana, estão as ajudas de até 10.000 euros por pessoa para a compra de um novo carro. Estima-se que cerca de 100.000 veículos tenham ficado inutilizados, numa região onde a maioria dos trabalhadores tem de se deslocar de carro para o seu trabalho.
O Governo aprovou ainda um valor de até 600 euros por estudante para a compra de material escolar que tenha ficado destruído pela catástrofe. Às empresas destinou uma tranche de 1.200 milhões de euros que pode ser utilizado na reparação de instalações e compra de material. A maioria das medidas são ajudas a fundo perdido, que os cidadãos não terão de devolver.
O Governo quis ainda reforçar a proteção dos trabalhadores com uma nova medida de carácter laboral. A partir de agora, os trabalhadores espanhóis poderão pedir uma licença climática, sempre que não possam trabalhar devido a catástrofes naturais. Trata-se de um período de até quatro dias, 100% remunerado. A partir destes quatro dias as empresas podem passar esses trabalhadores para um layoff por causas de força maior.
Responsabilidades políticas
No plano político, a tensão tem subido de tom nos últimos dias, com acusações entre o Governo regional e o Executivo nacional. Carlos Mazón, presidente da Generalitat Valenciana, compareceu há 15 dias no Parlamento valenciano para prestar contas pelo sucedido. O líder recusou demitir e distribuiu a culpa pelos órgãos estatais, que acusou de falta de informação.
Apesar da Agência Estatal de Meteorologia ter enviado o primeiro aviso às 7.30 do dia 29, e o Governo regional ter alertado os cidadãos 12 horas depois, quando já muitas das zonas estavam inundadas, Mazón recusa responsabilidades, fala de “imprecisões e informações contraditórias” e diz “ que todo o sistema falhou”
Esta semana, numa comparência no Congresso dos Deputados, Pedro Sánchez defendeu a ação do Governo e dos organismos estatais e voltou a apontar o dedo a Mazón. Sánchez insistiu em que tanto a Agência Estatal de Metorologia (AEMET), “que emitiu o primeiro alerta, perto das 7.30 horas”, como a Confederação Hidrográfica de Júcar, “que enviou mais de 200 emails, onde advertia sobre a possibilidade de desbordamento” dos rios, forneceram toda a informação, e foi a Generalitat que não tomou as decisões necessárias.
“Não acredito que o estado autonómico falhou, nem que o sistema falhou. Acho que falharam algumas peças, sobretudo, algumas pessoas, pessoas em posições elevadas, que não estiveram à altura das suas responsabilidades”, acusou o primeiro ministro espanhol.
O líder do Governo lembrou que “a Câmara Provincial de Valência mandou os seus trabalhadores para casa ao meio-dia. A Universidade de Valência cancelou as aulas. O porto de Valência fechou”. E perguntou depois: “Como pode dizer que não avisámos quando todas estas organizações reagiram, citando os alertas da AEMET para o justificar? “
“Os dados foram enviados, os avisos foram emitidos, a informação chegou. Outra coisa é o que estas instituições fizeram com a informação. As agências governamentais cumpriram o seu dever. Agiram de acordo com os protocolos e fizeram bem o seu trabalho”, concluiu.
