Uma cozinha que é um "pequeno paliativo" num Brasil com cada vez mais fome
Cozinha Solidária da ONG Ação da Cidadania produz diariamente um milhar de refeições para distribuir por pessoas em situação de vulnerabilidade. Assumem que é um "pequeno paliativo" no combate à fome que Jair Bolsonaro já disse não ver no país, mas que está visível aos olhos de todos.
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Encostado a um muro da ocupação Benjamin Filho, no centro do Rio de Janeiro, de mochila às costas, Paulo Roberto lidera uma fila improvisada. É meio-dia e pouco e está na hora de comer, sabe-se lá quando será a próxima refeição, e a garantia ali junto daquele projeto é o almoço das terças e o "café da manhã" também às terças e às quintas.
"É difícil sobreviver na rua no Rio de Janeiro, se não fosse a colaboração e contribuição de algumas pessoas para com os moradores de rua, já tinha morrido muita gente de fome aqui na rua... De fome e de frio!", diz este carioca com uma barba branca que denuncia uma idade mais avançada.
Está há 23 anos sem um teto, "uma vida inteira", depois de ter tido uma "desavença familiar". "Não consigo emprego porque moro na rua, não consigo dinheiro e fico a depender das doações das pessoas, mas até isso está a ficar escasso, está acabando", lamenta.
E na situação dele ficaram muitos outros já depois da pandemia de Covid-19: diz o Observatório Brasileiro de Políticas Públicas com a População em Situação de Rua, da Universidade Federal de Minas Gerais, que só de janeiro a maio, pelo menos mais 26 mil pessoas passaram a não ter um teto no Brasil. Pela lógica, também com dificuldades em ter comida.
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Em agosto deste ano, o presidente e recandidato Jair Bolsonaro questionava numa entrevista se "alguém já viu alguém pedindo um pão na caixa da padaria?". A pergunta era retórica porque ele já tinha a resposta: "Você não vê, pô".
Bolsonaro não via filas nas padarias, como também não viu as 75 pessoas que foram buscar um almoço gratuito à Avenida República do Paraguai, a avenida por onde costuma parar o Paulo e por onde deverá continuar. Afinal, esperança no que aí vem, não é com ele: "Nem Bolsonaro, nem Lula... Nenhum dos dois oferece esperança nenhuma".
"Pequeno paliativo" para combater a fome
São nove da manhã e já cheira bem ali para os lados do bairro da Gamboa, no Rio de Janeiro, local onde foi cozinhado o almoço do Paulo Roberto e de outras mais 499 pessoas em situação de vulnerabilidade. No menu, bife de panela, arroz, pirão, salada de legumes, batata doce, cenoura, brócolos... "Está espetacular", diz uma das cozinheiras em frente a um panelão ao lume.
É a Cozinha Solidária, um projeto da Organização Não-Governamental Ação da Cidadania que, em pouco mais de um ano de vida, já matou a fome a muita gente com o "kit refeição" que tem a alimentação, fruta, água e talheres. "Devemos estar a bater as 248 mil refeições desde que começámos", nota Lícia Marca que é a coordenadora desta cozinha.
O projeto está oleado e tem preocupações, não só ao nível da nutrição, mas também com zero desperdício: o que não serve para as refeições dos humanos, serve para a dos animais. Aqui até os descartáveis são biodegradáveis como é o caso da caixa de papel onde se lê que "quem tem fome, tem pressa", o lema criado pelo fundador da Ação da Cidadania e sociólogo, Herbert de Souza. E na pressa dos tempos que correm são as mulheres as mais afetadas, diz Joyce Lima, também da equipa da Cozinha Solidária.
"A gente está a viver no Brasil, nos últimos dois anos, uma situação muito grave. Temos um agravamento da fome gigantesco, então, a nossa demanda é cada vez maior. A gente produz mil refeições por dia e entendemos que não é o suficiente devido à demanda, temos uma população na rua que está a crescer com famílias inteiras na rua", explica Joyce, notando que perante este problema "muito grave", entendem que o trabalho que desempenham é "um paliativo pequeno, um trabalho de formiga, que não é o suficiente diante da população de 33 milhões de pessoas que passam fome no Brasil".
Já Lícia, que antes de trabalhar neste projeto, trabalhou no município do Rio de Janeiro e tem lidado com questões de insegurança alimentar, considera que havia alternativa para não chegar "ao caos". "Bastava investimento, dedicação, responsabilidade e compromisso com o brasileiro e isso, realmente, não aconteceu", nota.
Depois de ter orientado os trabalhos e antes de começar a ajudar a fechar as caixas que forraram o estômago a 500 pessoas neste almoço, Lícia fala sobre a queda nas doações e também, claro, sobre a eleição. Às páginas tantas, é citado "Amanhã há de ser outro dia", como diz a canção do Chico Buarque, ficando a incerteza de que dia vai ser o de amanhã.
Perante isso, os olhos mostram o que vai na alma e fica o desabafo emocionado: "Posso dizer uma coisa? Acho que nem amanhã, o que vai ser da parte da tarde? Não é amanhã mais, amanhã já ficou muito distante, já não sabemos o que vai ser daqui a pouco. O contexto geral, hoje, é esse, sabemos que o hoje está muito desesperador e quando a gente ouve, vê notícias e vê as redes sociais, ainda está distante do que as pessoas estão passando, ainda está".
