Venezuela: "A reforma e o salário mínimo são de três dólares. Maioria das pessoas tem três ou quatro empregos"
Elides Rojas, veterano do jornalismo venezuelano, foi repórter, editor e director do diário El Universal. É também advogado, formado pela Universidade Católica Andrés Bello. Destaca a mobilização em torno de Maria Corina Machado e Gonzalez-Urrutia e antecipa as grandes prioridades para o país. Entrevista na TSF.
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Acredita que a Venezuela possa assistir a uma mudança política este Domingo?
Sim, pela primeira vez em 25 anos a maioria das sondagens, ou seja, todas as sondagens que têm um carácter independente e uma tradição de trabalho sério e e credível, dão entre 25 e 30 pontos de vantagem para o candidato da oposição, Edmundo González Urrutia. Três empresas de pesquisas fundadas pelo governo e que analisam as atividades governamentais também mostram Maduro como o vencedor, com uma diferença de 30 pontos em relação à oposição. Portanto, desta vez há uma atmosfera de que o governo pode ganhar as eleições, mas há muita inquietação porque há alguma preocupação de que aceitem o resultado se perderem e entreguem o poder.
E Nicolás Maduro teve aquela frase a dizer que pode haver um banho de sangue…
Assim é. É muito um tipo de mensagem que também é dita o tempo todo, não só pelo presidente, mas também pelos seus porta-vozes mais importantes, falando em sair às ruas, que a única coisa que garante a paz aqui é este governo porque se a oposição vence, haveria muita agitação e problemas e protestos diários.
Então cria-se um ambiente muito complicado em termos de tranquilidade e confiança de que uma vez terminada a votação, os resultados sejam dados conforme o esperado e comece o processo de transição, que em princípio o governo vai durar mais seis meses porque a entrega oficial é em Janeiro do próximo e nesses seis meses tudo pode acontecer. Além disso, há aqui o bloqueio de 61 meios digitais que não poderão mais ser acedidos caso não se tenha uma VPN para usar. Também é preocupante porque é como uma espécie de bloqueio de comunicação porque não temos imprensa escrita, há vários anos a imprensa escrita na Venezuela morreu, como já se tinha avisado, o que resta são dois ou três jornais oficiais feitos pelo governo. Então, tudo depende das emissoras de rádio e televisão que estão sujeitas à regulamentação governamental e não publicam nada que tenha a ver com a oposição. Mas os meios digitais fizeram isso. As atividades de campanha de María Corina Machado, as atividades de campanha de Inmundo González, mas agora quem não tem VPN, não tem acesso. E além disso, situações de conflito e em alguns casos de deportação, como aconteceu com o jornalista Pizarro da Argentina, que está a ser deportado, estão a acontecer essas coisas no aeroporto com a chegada de correspondentes estrangeiros e com muitos jornalistas de no exterior hoje, após um longo interrogatório no aeroporto. Portanto, não está a ser gerado o melhor ambiente que levaria a uma transição efectivamente pacífica.
Quem vai votar em Edmundo Gonzalez Urrutia, de alguma forma sentirá que está a votar em Maria Corina Machado?
Sim, com toda certeza, com toda certeza é esse o sentimento, porque tu conheces o processo em que María Corina venceu nas eleições primárias em outubro do ano passado. Ela é alguém com mais de 30 anos na política, sempre questionadora e talvez o seu erro tenha sido chamar ataenção durante todo este tempo, com o seu trabalho, e a tensão sempre foi um elemento que levou à vitória do governo. Ela tentou as eleições tanto para a assembleia nacional, como para as legislativas ou para a presidência. Mas uma liderança muito acentuada de Maduro, quando ela atinge o seu auge logo após as primárias, o governo resolveu muito facilmente, impedindo-a participar nas eleições. Então isso obriga a plataforma unitária que é apoiada por María Corina Machado a procurar um substituto e nomear por consenso a Dra. Corina Lloris, cuja candidatura também não foi permitida, então tudo termina com um novo procedimento de consenso em torno de González Urruttia e o apelo de Maria Corina para votar nele mais ou menos como Chávez fez antes de morrer, que foi votar em Maduro.
Isso quer dizer que se Edmundo Gonzalex Urrutia for eleito, Maria Corina pode ser logo reabilitada?
Bem, existe um procedimento legal para que isso aconteça e de facto existe uma presunção negada pela oposição que é que em Janeiro, quando ele tomar posse, se vencer as eleições e González Urbultia tomar posse em Janeiro, ele lançaria uma lei geral de amnistia porque temos cerca de 400 presos políticos: muitos militares, jornalistas, advogados, políticos, especialmente oposição, e esta lei de amnistia incluiria a reabilitação de cerca de 300 pessoas que também ruestão inabilitadas para participar nas eleições, gente de praticamente todos os partidos da oposição: presidentes de câmara, governadores e políticos de segundo escalão. Essa lei de amnistia permitiria que ela ocupasse cargos públicos, então Urrutia poderia nomeá-la vice-presidente e ele sairia mais tarde para que ela ocupasse a presidência ou permaneceriam assim trabalhando juntos.
Mas a situação económica está bastante melhor do que há cinco anos o que pode facilitar a vida ao governo neste momento eleitoral…
Na verdade, é um mito dizer que a oferta melhorou. O governo encontrou-se em águas profundas há três anos e permitiu a utilização do dólar como moeda; isso era proibido, era punível, podias ir para a prisão por usar dólar. Uma vez que permitem o uso do dólar, o câmbio fica livre e as pessoas podem receber remessas que giram em torno de 5 bilhões de dólares por ano, que vêm dos 8 milhões de venezuelanos que estão fora do país. Então aquele dinheiro movimentou um pouco a economia em termos de conseguir comida, peças de reposição para veículos, consumos que antes eu não conseguia porque não tinha nada, ficou tudo praticamente paralisado. Mas o resto da economia continua muito comprimida, temos uma inflação de 170 por cento ao ano, o salário mínimo é de três dólares por mês, a pensão de reforma é de três dólares por mês e a maioria das pessoas tem três ou quatro empregos para sobreviver. Em termos económicos a melhoria tem sido que tens o que comprar e algumas pessoas têm com o que comprar.
Como avalias esta recente tensão com o Brasil? Maduro fez críticas ao sistema eleitoral brasileiro e o Brasil decidiu não enviar observadores eleitorais para as eleições presidências na Venezuela…
Sim, isto é habitual quando entramos em processos eleitorais ou em qualquer momento em que o executivo entra em conflito com um país, trata-se sempre de pessoas que expressaram alguma opinião que não agradou ao governo, por exemplo Alberto Fernández, ex-presidente do Argentina disse estes dias que se Maduro perdesse teria que se render e logo lhe retiraram o convite. Ele já não vem porque vinha como observador.
Quais são as prioridades para o próximo governante, além de tratar de conseguir com que a petrolífera nacional funcione em condições? Li que na educação, por exemplo, há medidas que ajudam a vida dos professores…
Sim, o governo decidiu autorizar a realização de apenas dois dias de aulas para os professores fazerem outras coisas como vender frutas e vender bolos para que possam complementar a sua alimentação e sustento. O mesmo acontece com o sector da saúde, não há médicos, a maioria saiu do país, portanto todo o sistema nacional de saúde está praticamente falido, o que implica também um investimento e o resgate de profissionais, mesmo de outros países, se necessário. Não sei, essas são as áreas prioritárias para os primeiros meses a partir do próximo ano. Até no plano está o resgate dos média, já que neste momento o governo tem 32 centrais de televisão totalmente criadas por eles e só quem tem cabo é que consegue ver as outras estações, que são sete, e só transmitem o que o governo quer porque se não o fizerem perdem a concessão. O mesmo acontece com as rádios, o governo tem 158 rádios próprias. Então o plano também aparece para resgatar toda a rede pública de comunicação nacional porque é muito importante do ponto de vista da propaganda e do resgate da liberdade de expressão e liberdade de opinião que estão totalmente deprimidas há anos.
Como é, enquanto político, Edmundo Gonzalez Urrutia?
É um homem com muita experiência na área política porque passou aí toda a sua carreira; aliás, é aposentado na área diplomática, foi embaixador em vários países inclusive na Argentina e sempre esteve no designado para algum país , é um homem de pensamento social democrata, centrista, e de espírito conciliador, o que, de alguma forma, contribuiu para a sua nomeação, porque a oposição planeia trabalhar nos últimos seis meses e o que continua é um processo de unificação nacional que inclui o chavismo claro e. E se a liderança tivesse em mãos alguém que não tem a visão conciliatória como tem González Urrutia, seria um processo muito complicado. Foram 25 anos em que foram gerados muitos confrontos e o que a sociedade chama de dívidas, ou seja, presos políticos, pessoas que tiveram de sair do país, exilados, perseguidos… então, se o poder fosse assumido pensando em retaliação e vingança, seria difícil para o país se voltar para um futuro melhor e essa é a visão fundamental de González Urrutia, como ele disse.