Tudo começou na vontade de ler os escritos deixados pelos judeus portugueses do século XV. Hoje, o centro Chabad, para viver e celebrar a tradição judaica, vai mesmo nascer em Cascais.
No verão de 2006, Portugal vestia as cores da bandeira das quinas pelas ruas, coloridas também pelos cânticos e por conversas poliglotas, e Luís Figo e Pauleta abandonavam a Seleção à qual já tinham dado tantas alegrias. Eli Rosenfeld era, nessa altura, um estudante enviado para Lisboa, motivado para viver aquele que acreditava ser "apenas um verão de aventuras".
A quipá na cabeça era um símbolo seguro de interculturalidade, como o eram as camisolas italianas, as azuis e vermelhas de França ou as com tons amarelos, vermelhos e pretos da Alemanha. O "tipo de Brooklyn", de 22 anos, rendia-se então a um Portugal que o "chamava" e onde veio a cimentar muitas amizades.
"Sempre que tentava ligar às pessoas - e eu sou um norte-americano ingénuo que só sabe de basebol -, perguntavam-me: 'Rabino, está a ligar-me agora, a meio de um jogo de futebol?'", lembra.
Apesar da estranheza inaugural, Eli Rosenfeld depressa deixou de se sentir um hóspede. À época, o norte-americano pouco sabia sobre a vastidão do passado judaico no país. "Conhecia o nome Isaac Abravanel. Sabia que o criador do movimento Chabad no mundo só foi salvo da II Grande Guerra e do Holocausto por causa da sua passagem por este país, mas não sabia muito mais", admite, à conversa com a TSF.
As vozes judaicas dos "nossos egrégios avós"
"Ao chegar a Lisboa surgiram notícias terríveis. Qualquer pessoa apanhada com textos judaicos ou objetos religiosos seria morta. Fora de Lisboa, juntamente com outros dois judeus, cavámos um buraco. Por baixo de uma oliveira, enterrei o trabalho da minha vida. Era uma bela oliveira, salvaguardando as minhas ideias e pensamentos sobre a Tora. Para mim, era uma árvore de lágrimas." As palavras, que conversam na mesma língua com a vizinha saudade, foram escritas pelo rabino Abraão Sabá, nascido em Castela em 1440 e que viveu em Portugal entre 1492 e 1498, principalmente em Guimarães.
Esta é apenas uma de muitas "Vozes Judaicas de Portugal" que Shlomo Pereira - rabino português que fez o caminho inverso, e foi viver para os Estados Unidos - e Eli Rosenfeld compilaram em livro, fascinados com as histórias seculares do judaísmo em território nacional.
"Não há histórias destas em nenhum outro lugar do mundo", assevera Eli Rosenfeld. Em torno de documentos que recolheu durante anos de pesquisa, o norte-americano radicado em Portugal não se cansa de sorver, em hebraico ou em ladino, as memórias que outros antes de si deixaram.
"O responsável por readmitir judeus em Inglaterra foi um rabino português nascido em 1604, Manasseh Israel. Foi para Amesterdão [Holanda], depois para Inglaterra, e persuadiu a Coroa para aceitar os judeus de volta. Voltamos a ter a história dos judeus portugueses a ter um impacto na História mundial", conta. Nos desabafos deixados em rastos seculares ficaram também as páginas manchadas pelo antissemitismo repetido em épocas distantes da História. "Ele escrevia em ladino e, num dos seus livros, ele conta uma anedota que o pai lhe transmitiu. Descreve como era uma sexta-feira à tarde em Lisboa, nas lojas da Rua Nova, quando os judeus não podiam praticar a sua religião publicamente. As lojas estariam abertas e apareceria sempre alguém fazendo um sinal para os donos da loja fecharem o estabelecimento, porque chegara o pôr do sol", prossegue Eli Rosenfeld.
Encontrado por um vendedor de obras antigas, um dos livros com que o rabino norte-americano se deparou "foi publicado em 1600, mas o título diz-nos que foi escrito em 1470, em Lisboa". "Quando olhamos para a contracapa, vemos que foi escrito no 'fim oeste'", o que ajuda a criar uma imagem precisa de qual era a extensão do mundo conhecido até então.
Um legado que "pertence a todos os judeus espalhados pelo mundo"
O livro formula que "quem quer ser uma pessoa bondosa deverá querer estudar estas palavras". Essa é também a impressão do professor judeu: "É também isso que sinto em relação a estes rabinos portugueses. É incrível o que eles viveram, mas, se as suas histórias não forem ouvidas, é uma pena."
Eli Rosenfeld chegou a uma lista que inclui 40 rabinos que viveram em Portugal durante o período anterior e imediatamente subsequente à chegada da Inquisição. "Os judeus portugueses realmente tiveram um impacto no mundo como nenhum outro grupo na História. Muitas sinagogas de vários países foram planeadas e construídas por portugueses. A primeira sinagoga nos EUA foi construída por um judeu português", explica o rabino que acredita ser este um legado universal para "todos os judeus espalhados pelo mundo".
"Com o tempo, percebi que, não só Portugal tem alguma história judaica, como tem a mais espantosa tradição judaica, literatura... Portugal foi, durante um certo período, um dos pontos mais importantes da religião judaica no mundo. Muitas pessoas viveram, aqui, uma vida muito bonita", considera.
E hoje - aponta - a vida voltou a ser muito "bonita" para os judeus em terras lusas, não só porque este é um país que, na perspetiva do entusiasta nascido nos EUA, "abraça o seu passado judaico e que dá uma verdadeira oportunidade para o presente do judaísmo neste momento", como também é um lugar onde o mundo parece mais pequeno pelos laços que se estreitam e mais vasto pelo conhecimento que se adquire.
"Tenho muitos amigos cujas famílias eram originárias de Portugal, e que mais tarde foram para o Império Otomano, que tiveram a oportunidade de obter a nacionalidade portuguesa e ficaram verdadeiramente emocionados e orgulhosos. Isto não é apenas mais um passaporte, é a sua família a voltar a casa", nota à TSF.
Casa. Eli Rosenfeld não tem, pelo que apurou até ao momento, um elo genealógico com Portugal. Têm-no a sua mulher e os seus cinco filhos, três dos quais nascidos em terras lusitanas. Contudo, no Porto, em Lisboa, nos arquivos da Torre do Tombo que visitou com o espanto das primeiras aprendizagens, no Algarve ou em Cascais, sente-se sempre, hoje, a rodar a chave da residência própria.
Do primeiro Chanukah em Cascais à criação de um centro de Chabad
O "tipo de Brooklyn", agora com 35 anos, quer jorrar luz sobre as palavras dos judeus antepassados da História portuguesa, e tudo começou com um festival de velas acesas voltado para o mar.
"Na primeira vez que celebrámos o Chanukah [Hanucá] - o festival das luzes - em Cascais, fizemo-lo algumas semanas depois da data. Aconselharam-me a conversar com o presidente da câmara [Carlos Carreiras] e, mesmo assim, ele quis celebrá-lo ainda nesse ano. Perguntou-me onde e como queria a festa, disse-me: 'Isto tem de ser visto, tem de mobilizar as pessoas'", esclarece Eli Rosenfeld.
Carlos Carreiras não sabia, mas plantou as primeiras fundações de um centro que permitirá a continuação das festividades abertas à comunidade. "Assinalou a baía, mesmo no centro de Cascais, e disse que ali seria um bom lugar para tantas luzes", lembra ainda o rabino.
Este gesto significou muito para as famílias judaicas radicadas em Cascais "há muito tempo", e agora, depois de séculos de obscurantismo, a tradição judaica vai voltar a ganhar a intimidade dos vizinhos próximos. Muitas pessoas em Cascais fizeram "tudo pelo sucesso deste projeto e querem vê-lo concretizado num belo e marcante edifício".
No entanto, "algumas pessoas morreram sem ver este edifício ser concluído, sem que este projeto visse a luz do dia". "Alguns dizem-me que, quando se sentem em baixo, vão até ao lugar das obras e sentem-se inspirados para continuar", assinala Eli Rosenfeld.
O que está para nascer, até ao final de 2019, perto da Costa da Guia, com um abraço de mar, é um espaço aberto a todas as pessoas, dedicado à aprendizagem e à partilha, além das orações. "Podem ir ter comigo àquele espaço e estudar ali comigo a história dos judeus portugueses na nossa biblioteca, ver exposições, participar nas nossas celebrações e usufruir de um lindo jardim, com acessos para os que têm mobilidade reduzida, que estará adjacente à casa de Chabad", aponta.
E Chabad é o movimento que vira as atenções para a forma de viver a religião judaica e de entender as suas tradições e contribuições. Mas Eli Rosenfeld ajuda a clarificar: "Eu e a minha mulher gerimos a Chabad em Portugal, uma organização dedicada à aprendizagem e ao ensino em todo o mundo. Todos os países da Europa tinham um centro da Chabad, mas Portugal não tinha, na altura em que eu e a minha mulher iniciámos a nossa atividade."
Agora, Portugal terá um lugar geográfico para fortalecer o contacto com a espiritualidade da vida judaica. "Haverá um espaço dedicado ao Bar Mitzvá [cerimónia religiosa de introdução aos novos membros, normalmente aos 12 anos para as meninas e aos 13 para os meninos], outro dedicado ao Shabbat [dia de descanso para os judeus que se inicia ao pôr do sol de sexta-feira e termina na noite de sábado], outro ainda dedicado ao ensino da religião como preparação para a cerimónia do Bar Mitzvá", 1500 metros quadrados de um jardim "sensitivo com diversões as crianças" e ainda uma biblioteca.
"No centro que estamos a construir, vamos criar uma biblioteca. Uma biblioteca é habitualmente um lugar que se nos apresenta como com falta de vida, com silêncio. Nós queremos ter, nesta biblioteca, livros de todos os rabinos que um dia viveram em Portugal, o que constitui uma vasta coleção. Queremos um lugar onde os livros possam ser vividos", enaltece.
Eli Rosenfeld não tem dúvidas: "A vida judaica em Cascais deve florescer." Mais do que uma homenagem museológica à história empoeirada, o rabino quer edificar um símbolo de história-viva que possa acender as velas para dar a conhecer segredos guardados em baús escuros. "Temos uma crença judaica que diz que um pouco de luz dispersa muita escuridão", conclui.