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"Se você não tem dúvidas é porque está mal informado"
Millôr Fernandes(cronista e escritor brasileiro, falecido em 2012)
O ano está mesmo a acabar e quase todos suspiram pelo seu fim.
Tem sido um 2020 de sofrimento, medo e interrogações globais.
A Covid-19 não é a primeira pandemia da História da humanidade. Havemos de sair disto.
Mas a maior pandemia num século resultou no primeiro fenómeno criado pela transmissão e expansão de um vírus que ganhou dimensão universal na era da informação em tempo real.
E isso tem feito toda a diferença: tornou 2020 no ano do Grande Choque.
O choque da contradição entre a ideia de que a cura está a demorar e realidade indesmentível de que a Ciência tem respondido em tempo recorde (com várias vacinas a surgirem no mercado menos de um ano depois da declaração de pandemia por parte da OMS).
O choque do confinamento que colocou cidades enormes num vazio ainda maior e acelerou procedimentos digitais e práticas de teletrabalho.
O choque entre a preparação e o risco: nunca estivemos tão bem apetrechados para enfrentar um "outbreak" desta escala mas, por estranho que isso possa parecer, também nunca houve tantos riscos disso ser mal recebido.
O choque da globalização: acelerou o espalhar do vírus, mas travou a fundo com o crescimento da pandemia.
O choque do digital: a velocidade das redes e a democratização do acesso aos equipamentos tecnológicos permitem que empresas não parem, serviços continuem a ser assegurados, familiares e amigos continuem a ver-se à distância, milhões de alunos continuem a aprender.
Seria apenas fantástico (conseguem imaginar como seria uma pandemia destas nos anos 70, 80 ou até 90 do século XX, sem net nem telemóveis?). Mas também está a ser assustador: a era da comunicação imediata acelera a informação - o problema é que extravasou a desinformação.
O Grande Choque de 2020 é, também, o da emergência dos negacionistas - que saíram das grutas em que viviam escondidos (receosos da chacota social da sua ignorância que, de atrevida, passou a arrogante) - num salto para o "mainstream" político e mediático.
Para o melhor e para o pior
Vivemos momento inigualável nas nossas vidas: para o melhor mas também para o pior.
Nos 21,4 milhões de casos ativos Covid-19 no mundo, apenas 0,5% são "graves, severos ou extremos" (há meio ano eram 5%, há três meses eram 2%) - estão a descer gradual e consideravelmente. Ainda bem.
Mas é preciso explicar que um em cada 200 casos serem muito graves num universo de mais de duas dezenas de milhões é imensa gente - 107 mil pessoas, mais concretamente.
O grande problema desta pandemia é que com a verdade nos podemos todos enganar.
Mas, boa!, já chegou a vacina. Ou melhor: vêm aí várias vacinas.
Aparentemente, duas delas mais eficazes que as outras (Pfizer/BionTech e Moderna), mas todas as que forem aplicadas serão seguras e com eficácia suficientemente aceitável para esperarmos que possam ter efeitos muito positivos na imunização.
Bastaram 303 dias desde o conhecimento total do SARS Cov-2 até à produção da vacina. E isso é absolutamente extraordinário: pela primeira vez na história da Ciência, fomos capazes de produzir em menos de um ano algo que tem demorado entre dez a 30 anos.
Mas é fundamental não haver ilusões: a vacinação só produzirá efeitos claros se for feita em massa pela população. Se só chegar em quantidades suficientes aos países mais ricos, não serão só os pobres a sofrer: serão todos.
Numa pandemia só estaremos seguros se estivermos todos seguros.
E há as grandes interrogações que talvez 2021 venham a responder: o que vai mesmo acontecer aos recuperados nos meses que se seguem à doença? Que tipo de sequelas perdurarão? As estirpes variantes que estão agora a aparecer ameaçam a eficácia das vacinas ou serão só um pormenor?
Em estado de negação
Como é possível que com cada vez maior acesso a informação e a esclarecimento cresçam tanto os negacionistas?
Recorro a Yuval Harari, filósofo e historiador israelita,
talvez a maior cabeça dos nossos tempos, em artigo no New York Times: "As teorias da cabala global conseguem atrair vastas quantidade de seguidores em parte por oferecerem uma explicação única e direta para inumeráveis processos complicados. As nossas vidas são constantemente abaladas por guerras, revoluções, crises e pandemias."
"Mas se eu acreditar nalgum tipo de teoria de cabala global, desfruto do sentimento reconfortante de compreender tudo. A guerra na Síria?", pergunta Harari.
"Não preciso de estudar a história do Médio Oriente para compreender o que está a acontecer lá. Faz parte da grande conspiração. O desenvolvimento da tecnologia 5G? Não preciso de fazer pesquisa nenhuma sobre a física das ondas de rádio. É a conspiração. A pandemia da Covid-19? Não tem nada a ver com ecossistemas, morcegos e vírus. É obviamente parte da conspiração. A teoria da cabala global é uma chave-mestra que destranca todos os mistérios do mundo e me concede entrada num grupo exclusivo - o grupo das pessoas que compreendem. Torna-me mais inteligente e sábio do que a pessoa normal, e põe-me até acima da elite intelectual e da classe governante: professores, jornalistas, políticos."
"Eu vejo o que lhes passa despercebido - ou o que eles tentam esconder", acrescenta o autor de "Sapiens - Uma breve história da Humanidade". "As teorias da cabala global sofrem da mesma falha básica: assumem que a História é muito simples. A premissa-chave das suas teorias é que é relativamente fácil manipular o mundo. Um pequeno grupo de pessoas pode compreender, prever e controlar tudo, desde as guerras até às revoluções tecnológicas e as pandemias. (...) Elaboramos um plano e ele vira-se contra nós. Tentamos manter um segredo e no dia seguinte toda a gente fala dele. Conspiramos com um amigo de confiança e no momento crucial ele esfaqueia-nos nas costas. As teorias da cabala global pedem-nos para acreditar que, embora seja muito difícil controlar as ações de mil ou mesmo cem pessoas, é surpreendentemente fácil manipular quase oito mil milhões. (...) Perceber que nenhuma cabala única pode controlar secretamente o mundo inteiro não é apenas exato - também nos dá poder", remata o pensador israelita.
A Ciência vai salvar-nos. Mas será que nos salvamos dos negacionistas?
O regresso da Europa
O que esta pandemia tem voltado a mostrar é que devemos confiar e contar com a Europa bem mais do que muitas vezes achamos.
A Europa vai garantir-nos a recuperação económica (apesar da Hungria e da Polónia) e vai garantir-nos o acesso às vacinas, em tempo recorde.
Não é coisa pouca.
Ursula von der Leyen é uma das grandes figuras internacionais de 2020. Talvez a maior de todas. Com Macron (igualmente europeísta, mas mais exigente) e Merkel (que felizmente ainda está em cena).
"É numa situação de crise como esta que sentimos que é uma mais-valia fazer parte da União Europeia", nota Rui Santos Ivo, presidente do conselho executivo do Infarmed, em entrevista ao DN.
A firmeza com que Ursula tem negociado com Boris o "sprint" final do Brexit reforça esta ideia de uma Comissão Europeia bem liderada - uma das melhores confirmações de 2020.
E a América livra-se de Trump. Mesmo?
"A integridade das eleições nos EUA permanece intacta. Nós, o povo, votámos. A fé nas nossas instituições aguentou firme. A chama da democracia segue viva nesta nação há muito tempo. E sabemos que nada -- nem sequer uma pandemia ou um abuso de poder -- pode extinguir essa chama"
JOE BIDEN, Presidente eleito dos EUA, discurso após a votação do Colégio Eleitoral, a 14 de dezembro
"Os congressistas republicanos que continuam a apoiar Trump no caminho de não reconhecer a evidência da vitória de Biden podem não se importar de ter perdido a vergonha. Mas a História vai ter o cuidado de recordar os seus nomes."
RUTH MARCUS, editorial do Washington Post
Os últimos anos foram de crescimento dos extremos e isso parecia ser uma inevitabilidade eleitoral a partir de Trump 2016 e depois Bolsonaro 2018.
E o início de 2020 sinalizava uma aparente confirmação: além de Trump nos republicanos, assistíamos ao crescimento da influência de Sanders e da esquerda radical no Partido Democrata.
Mas esta eleição 2020 acabou por ser a vitória dos moderados: nas primárias democratas, Biden era o candidato mais centrista, institucional e moderado. Ganhou a nomeação, reduziu a ameaça interna da esquerda e depois bateu claramente o "extremista" Trump na eleição geral.
Afinal ainda é possível ganhar eleições ao centro na América. E é ao centro que Joe Biden está a formar a próxima Administração 21/25.
A institucionalização da "realidade alternativa"
A partir de agora, sempre que um candidato pouco dado a respeitar as regras e os princípios democráticos sentir-se-á tentado a montar narrativa de "fraude" em massa para justificar o fracasso eleitoral.
Como é possível haver milhões ainda a seguir Trump apesar das evidências?
Porque recusam as regras de equidade das instituições, porque se sentem confortáveis ao encontrar sempre um "inimigo externo" para justificar os seus próprios falhanços: podem ser os media, os "políticos", agora também os juízes ou a ciência.
Trump vai continuar a ser para eles "o vencedor" - depois de quatro anos de "factos alternativos", criaram agora uma "realidade eleitoral alternativa". Fenómenos como o QAnon ou a visibilidade dos Proud Boys estão para ficar.
As consequências estão à vista: milhões de norte-americanos acreditam mesmo que Trump venceu as eleições e ainda esperam um golpe de teatro, que obviamente nunca acontecerá, que reverta o processo até à tomada de posse.
Na "Trumposfera", no Make America Great Again, a ideia de vacina nem sequer é muito popular: são imensos os que simpatizam com os movimentos anti-vacinas, com as pseudociências, com as correntes negacionistas em relação à existência da pandemia ou ao uso de máscaras. Ao mesmo tempo, conferem créditos ao seu campeão por supostos méritos de Trump em ter-se chegado à vacina em tempo recorde.
E nem sequer veem contradição nessas duas premissas.
É absurdo. Depois de todas as decisões judiciais, depois de todas as certificações dos estados, depois da votação clara e sem espinhas dos Grandes Eleitores, claro que é absurdo.
Mas só parece absurdo a quem permanece fora desse ecossistema construído em mentiras, mas mais poderoso do que possamos imaginar.
Recolocar Trump na margem do sistema
Em 2016 a vitória de Trump começou por parecer chocante e havia que fazer processo de integração do inaceitável nas estruturas do poder.
Os republicanos viram Trump como um corpo estranho no início das primárias e tiveram que o ir absorvendo.
Ao longo dos quatro anos de presidência, passaram da estranheza inicial para um constrangedor apoio revelado a Trump, revelado até nos momentos em que isso parecia mesmo inaceitável (Charlotesville, impeachment...)
A "trumpização" dos republicanos foi tão forte que mesmo nas semanas após a derrota a maioria continuou com ele na narrativa disparatada da fraude.
Mas desde a confirmação no Colégio Eleitoral muitos estão finalmente a demarcar-se (incluindo Mitch McConnell, líder da maioria democrata no Senado).
Da "trumpização forçada" em 2016, os republicanos passaram agora para o processo de desligamento desse corpo estranho. Trump vai voltar a parecer, cada vez mais, alguém de fora. E que agora até sonha com a lei marcial para usar os militares numa última tentativa (felizmente irreal) de inverter a eleição.
O grande problema com Donald Trump foi tantos terem querido acreditar, durante tanto tempo, que "talvez as coisas não sejam tão más como pareçam". As últimas semanas dissiparam as dúvidas que pudessem restar: é mesmo muito mau.
Falta saber se o Partido Republicano volta a conseguir ter uma existência próprio para lá de Trump ou está condenado a continuar refém de alguém que acabou de perder a reeleição.
Corporizar o sofrimento: o homem e as suas circunstâncias
A falta de empatia de Trump pelas mais de 300 mil mortes americanas COVID e o modo como se comportou quando ele próprio teve a doença ter-lhe-á custado apoios em segmentos que lhe foram fundamentais em 2016: as mulheres brancas, os suburbanos, os mais velhos; possivelmente também algum eleitorado religioso.
Biden conseguiu mostrar empatia no ponto certo: ele próprio tem uma história de sofrimento pessoal (perdeu mulher e filha em acidente de automóvel dias depois de ter sido eleito para o Senado; perdeu filho com cancro na cabeça, em 2015, e isso travou-o de ser candidato em 2016).
É daqueles casos em que foi "o homem e as suas circunstâncias": noutra qualquer eleição teria sido visto como candidato fraco e desinteressante. Nesta, mostrou-se aquele em melhores condições de corporizar o que foi este dramático ano 2020 para a América.
Obama mobilizou em 2008 pelo carisma inspirador ("Yes We Can". Trump assustou em 2016 pela visão de "pesadelo" de uma "carnificina americana" (American Carnage, ideia forte do seu discurso de posse) e prometeu "fazer a América Grande Outra Vez".
Fosse pelo sonho (Obama) ou pelo pesadelo (Trump), os últimos dois presidentes apresentavam uma proposta de mobilização -- e tinham em comum dizer mal "dos políticos de Washington".
Joe Biden é o primeiro Presidente em duas décadas a chegar à Casa Branca com proposta tranquilizadora -- com a modéstia de não exigir "revolução", "mobilização" ou "transformação". Apenas um "back to basics" de uma América decente, confiável, sem ruturas.
Uma "broncalina do camandro"
Neste ano de tantas perdas, termino estas linhas com a recordação de alguém que aqui comentava e escrevia e 2020, a 17 de maio, levou.
Por estes dias de perturbação americana, pelo comportamento inacreditável do ainda Presidente dos EUA de não aceitar a derrota, tenho-me lembrado muito do Embaixador José Cutileiro.
O que diria ele n" "O Estado do Sítio", ao Ricardo Alexandre, e o que por aqui escreveria sobre Trump a perguntar aos conselheiros como poderá aplicar a lei marcial para evitar a transição, depois de levar 86 derrotas judiciais seguidas?
Nascido a 20 de novembro - tal como o futuro Presidente dos EUA, Joe Biden - José Cutileiro tinha capacidade única para analisar o mundo com histórias que tinha vivido. Foi talvez quem melhor conseguiu juntar saberes que nos ensinavam no que mais ilustre o conhecimento podia ter com pormenores da Vida que só ele sabia contar.
O seu "Inventário", que li de um fôlego este verão, é, a propósito, uma bela prenda de natal.
Como resumiria o Embaixador este ano 2020 do Grande Choque? Aposto que com esta frase, que tanto usava em crónicas e comentários, citada de amigo designer sobre quem assinou obituário (e ele fez tantos de elevado calibre e leitura deliciosa): uma "broncalina do camandro".
*Germano Almeida é autor de quatro livros sobre presidências americanas