Vinte e uma ideias para um ano em que é mesmo muito difícil apontar vencedores.
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1. O ano em que ninguém saiu a rir
A pandemia evoluiu, chegou a parecer dissipar-se, mas depois voltou em força. A vacinação foi um sucesso em países como Portugal ou Israel, mas a chaga do negacionismo emergiu até em locais com taxas de instrução elevadíssima. Frescura de ricos? Talvez, mas o problema é complexo e certamente merece estudos aprofundados nos próximos anos - só poderá ser minimizado se o conseguirmos compreender. E a percentagem vergonhosamente baixa da cobertura vacinal em África (que só não tem consequências ainda mais dramáticas pela composição etária muito jovem dos países africanos) lembra-nos que as críticas insistentes do Secretário-Geral da ONU, António Guterres, sobre o "nacionalismo das vacinas" se mantêm válidas. Estados Unidos e China escalaram a tensão que dominará a nossa geração. No Top10 das maiores empresas do mundo neste final de 2021, 90% são chinesas ou norte-americanas: a Saudi Aramco, maior petrolífera da Arábia Saudita, é a única exceção (quinta maior empresa do mundo). O ICBC (Banco Industrial e Comercial da China) lidera a lista e outro grande banco chinês (China Construction Bank) surge em quarto. A seguradora Ping An Insurance Group (8.º) e o Agricultural Bank of China (9.º) são as restantes empresas chinesas no Top10. Metade desse Top10 é de empresas norte-americanas: JP Morgan (2.º), Berksire Hathaway (3.º), Apple (6.º), Bank of America (7.º) e Amazon (10.º). A Europa, que só tem três empresas no Top30 das maiores do mundo em 2021 (duas alemãs - Volkswagen 17.º e Allianz 24.º -- e uma francesa, o BNP Paribas, em 30.º) agravou insuficiências. As 30 maiores empresas do mundo em 2021 por país: 14 norte-americanas, 9 chinesas, duas japonesas, duas alemãs, uma francesa, uma saudita, uma sul-coreana. A Índia (país chave para que os Estados Unidos consigam travar a ascensão chinesa) teve picos pandémicos assustadores. O Mar do Sul da China sobrepôs-se com novo foco geoestratégico das grandes potências. Os Censos revelados nos EUA e em Portugal confirmaram tendências que agravam assimetrias: urbanização dominante e, em muitos casos, descontrolada; isolamento rural; envelhecimento das populações (só minimizado pela imigração). O Relatório Sobre a Desigualdade Mundial expõe a injustiça global: os 10% dos que mais têm juntam 76% de toda a riqueza - e os 51% mais pobres têm só 1,8% dos rendimentos. "Isto está cada vez pior?" Infelizmente, não é vulgar conversa de café: está confirmado nos melhores documentos. 2020 tinha sido o ano do Grande Choque. 2021 será o ano em que ninguém pode sair a rir-se.
2. EUA vs China, a história do nosso tempo
Joe Biden tem uma perceção ainda mais clara e definida do que tinha Trump sobre a ameaça da China como "potência desafiante" à grande potência ainda incumbente, os EUA. Também por isso, a única grande aprovação bipartidária neste mandato foi uma lei anti-China, sobre a produção de semicondutores nos EUA. Ao contrário do que ocorria com a bipolaridade do mundo americano-soviético, que nos mostrava dois mundos opostos e sem pontos de contato em quase tudo, americanos e chineses têm um nível de interação e interdependência altíssimo. A URSS não era um competidor, mas era uma ameaça real. Mesmo não sendo "ameaça" oficial, a China é um enorme competidor. Xi Jinping alargou a influência chinesa com os projetos "One Belt, One Road" e a Nova Rota da Seda. Perto de meia centena de países devem à China o equivalente a pelo menos 10% do seu PIB. Pequim disputa o poder diplomático americano e fez tudo, nos anos Trump, para aproveitar os vazios morais deixados por um Presidente dos EUA que abdicou do "excecionalismo" que havia caracterizado as sete décadas anteriores da política externa de Washington. A supremacia de EUA e China é tão grande que a riqueza dos dois maiores juntos (38 biliões de euros) é 53% superior à dos oito seguintes (24,88 biliões de euros). E representam 61% do total da riqueza do Top10 (do 3.º ao 10.º juntos têm apenas 31%).
3. Joe Biden e a promessa da salvação da América
Joe Biden quer pôr os milionários e as grandes empresas a pagar, com impostos, a sua agenda social e climática. Depois de ter assinado a Lei de Infraestruturas (1,2 biliões de dólares), o Presidente dos EUA viu aprovado na Câmara dos Representantes o outro grande pacote de intervenção federal: expansão da rede de apoio social (combate à pobreza, ajuda às minorias, equidade racial, perdão parcial empréstimo a estudantes) e Clima. A menos de um ano das intercalares de novembro de 2022, e perante o risco real de perder a maioria democrata nas duas câmaras do Congresso para os republicanos, Biden está a lutar contra o tempo para manter-se como o ás de trunfo de um sistema em permanente conturbação. Para os próximos cinco anos estão previstos 550 mil milhões para renovação de estradas, pontes, viadutos, caminhos de ferro, aeroportos, internet de banda larga para todos os lares americanos, carros elétricos, sistemas hidráulicos. Grande parte dos novos empregos a criar serão para "blue collar", americanos pouco qualificados (muitos deram-lhe a vitória nos estados do Midwest). A chave agora é chegar à "economia real" para acelerar recuperação económica. Trata-se do maior plano federal em meio século para melhorar equipamentos e modernizar tecnologias. Passa a ser o maior instrumento desta presidência para criar emprego e falar para a "América esquecida" (90% dos novos empregos serão americanos com poucas qualificações). No polo oposto, as eleições de há semanas que deram o triunfo aos republicanos no governo da Virgínia e puseram como "mayor" de Nova Iorque Eric Adams, um antigo polícia de agenda securitária, embora democrata, mostraram que os EUA não gostam, no global, de uma agenda demasiado à esquerda, rejeitam radicalismos e não querem domínio da "cultura de cancelamento". Joe Biden ganhou a Casa Branca pela via moderada e centrista. Parecia querer, nos primeiros de presidência, seguir um caminho mais à esquerda. Mas conhece demasiado bem a América para perceber que, entre tamanha pressão dos extremos, deve permanecer na faixa do meio. Se o fizer, talvez a tal "maioria de bom senso" que se manifestou com um recorde de 81 milhões de votos há um ano, volte a impor-se nas urnas em 2024. A democracia americana está doente - mas funciona.
4. Donald Trump e a "Big Lie"
Os EUA ainda não se livraram do Trumpismo - e nem a invasão do Capitólio parece ter servido de vacina para milhões de americanos que preferem manter-se numa via antidemocrática. A 6 de janeiro de 2021, a democracia norte-americana viveu o seu momento mais grave em mais de dois séculos. O assalto ao Capitólio foi o culminar de um processo de disrupção política que ainda está em curso. Que caminhos se percorreram até que, por exemplo, o congressista republicano Andrew Clyde, da Geórgia, tenha dito em plena sessão da Câmara dos Representantes que a ocupação violenta do Capitólio foi "uma visita turística normal"? Ou que, tantos meses e tanta evidência depois do ocorrido, ainda dois em cada três eleitores republicanos ainda acreditem na "Big Lie" e permaneçam na tese de que "a eleição foi roubada" e que o verdadeiro vencedor do sufrágio de há um ano teria sido Donald Trump? Ou que um em cada três vá mais longe e defenda que a invasão do Capitólio terá tido uma justificação plausível? Apesar de mais de um terço dos americanos continuar a acreditar na "Grande Mentira" (insistem que foi Trump e não Biden a ganhar as eleições de 2020), as instituições resistem. Mary C. Curtis, na "Roll Call", nota: "É da natureza humana não levar demasiado a sério uma crise até que ela nos bata à porta. Mas os Estados Unidos já passaram esse ponto numa série de assuntos, com demasiados cidadãos em estado de negação ou a obter vantagem desse estado. A disfunção na América já não está apenas a bater à porta. Parafraseando Sinclair Lewis, "não pode acontecer aqui, até acontecer".
5. Xi Jinping equiparado a Mao e Deng
O Partido Comunista Chinês selou o caminho para terceiro mandato presidencial de Xi Jinping, certamente confirmado no próximo ano. "Resolução histórica" colocou Xi a um plano só equiparável às que receberam Mao Tse Tung e Deng Xiaoping. O líder chinês avançará assim, legitimado, para o aumento do confronto económico com os EUA e para abordagem assertiva nas relações internacionais, com vista ao alargamento da Nova Rota da Seda. A nível interno, a agenda anticorrupção, a aposta na redução das desigualdades jogando com o crescimento e a agenda ambiental, apesar das hesitações mostradas na COP 26, são tendências do regime de Pequim, a acompanhar com atenção.
6. Estará a ascensão chinesa condenada a rebentar?
Temos olhado muito, nos últimos anos, para os fatores que têm contribuído para a perda de poder relativo dos EUA. Falta olharmos com mais atenção para os riscos de crise dos fatores que têm levado até agora à ascensão chinesa. Os casos recentes Evergrande e Fantasia avisam-nos para que um "cisne negro" financeiro gigantesco vindo de Pequim possa aparecer quando menos esperarmos. Três obstáculos contrariam a tese de pujança chinesa: o declínio do crescimento populacional (que ameaça a fórmula assente na explosão do consumo interno para reduzir a dependência de Pequim das exportações); o crescimento económico abaixo dos valores que sustentaram o modelo chinês nas últimas três décadas (já se notava antes da pandemia, agravou a partir dela); danos reputacionais pelo modo como terão ocultado o risco da COVID-19.
7. Rússia vs Ucrânia
O que leva Putin a insinuar nova ofensiva militar na Ucrânia? Jogar na perceção de ter um poder que, na verdade, não tem. A Rússia é a 15.ª economia mundial. Tem grandes problemas e contradições internos. A força regional é o seu maior trunfo. Alargar a sua zona de influência é decisivo. Assim como é fundamental para os objetivos de Putin conseguir interferir em decisões de países rivais, pela via dos ataques cibernéticos (Hillary Clinton e os "remainers" no Reino Unido que o digam). Há muito que não é uma potência global. Mas continua, por exemplo, a ser o maior poder nuclear do mundo (6.850 ogivas, mais 350 que os EUA, tendo russos e norte-americanos, juntos, 92% do total). Putin pretende que Biden aceite uma renegociação do mapa de segurança europeu pós-Guerra Fria, agora que os EUA estão de saída dos principais palcos militares da Eurásia e se viram para a contenção da China. O líder russo considera o fim da URSS "a maior tragédia geopolítica do último século". Tem todo o interesse em explorar a ideia de que pode invadir a Ucrânia. Mesmo que acabe por não o fazer. Será "bluff"? É capaz. Mas os mais de 100 mil soldados russos na fronteira da Ucrânia (perto de 175 mil se a eles somarmos os já existentes na Crimeia e nas zonas separatistas pró-russas no Donbass) dão-lhe a possibilidade de, a qualquer momento, passar da perceção à realidade. Convém não minimizar a ameaça russa. E convém sobretudo não descansar sobre a "fezada" de que "vai acabar por não acontecer nada". Na Ossétia do Sul (Geórgia, 2008) e na Crimeia (Ucrânia, agora anexada pela Rússia, 2014), Vladimir Putin já provou que pode mesmo passar à agressão bélica.
8. Reeleição de Macron ameaçada por Zemmour
Em 2017, o triunfo claríssimo do centrista, multilateralista e profundamente europeísta Emmanuel Macron sobre a populista, demagoga, nacionalista e soberanista Marine Le Pen surgiu como um bálsamo de alívio, meio ano depois da eleição choque de Trump na América. Parecia a prova de que era possível existir uma via crítica dos partidos e do "business as usual" mas com narrativa sólida, construtiva e não baseada em "fake news" e no discurso do ódio. Só que Macron nunca conseguiu ultrapassar as suas próprias contradições, num eterno equilibrismo frágil entre um discurso de centro-esquerda na frente internacional e um programa de poder com agenda de centro-direita (bem mais do agrado dos patrões que dos sindicatos, demasiado flexível para a tradição estatista francesa). Em 2017, deu para ir buscar votos a quase todo o lado: aos socialistas desiludidos com Hollande, aos conservadores órfãos de Fillon, até à esquerda radical assustada com a ideia de Marine poder mesmo vencer. Macron percebeu que era no centro que estava a virtude, perante o fantasma da extrema-direita e as fantasias da extrema-esquerda. Em 2022, já não vai dar para fazer a quadratura do círculo. A esquerda detesta-o e, desta vez, deve mesmo ser consequente nas urnas com a conversa de "Macron ou Marine é como escolher entre o diabo e satanás". A direita "frequentável" terá, desta vez, uma candidata forte, credível e moderada: Valérie Pécresse. O PSF aposta em Anne Hidalgo e não se prevê que ressuscite dos 5%. A extrema-direita e direita radical soberanista surgem com assustadores 35%. Marine com metade, Zemmour com a outra metade. Ao lado da novidade populista vinda dos comentários televisivos, Marine até parece moderada. Racista, misógino, ultranacionalista, antidemocrático, Zemmour é a prova de que o voto pelo ódio tem uma clientela fiel. Não é onda passageira. Está para ficar. Quem passa à segunda volta? Talvez Macron e Zemmour. Mas até pode ser Macron e Pécresse - seria novo alívio moderado depois do susto populista. Mas não é impossível que a impopularidade do Presidente provoque a surpresa de vermos duelo feminino Pécresse/Marine. Pesadelo Zemmour/Marine na segunda volta? Ainda não teremos caído tão fundo. Para já.
9. Boris Johnson em pantanas
2021 pode ter ditado o início do fim político para Boris Johnson. Pela primeira vez em muitos anos, os trabalhistas estão à frente dos conservadores nas sondagens. O Brexit tem sido um desastre. O ministro britânico que tinha a pasta da saída do Reino Unido da UE, David Frost, demitiu-se há dias em discordância com a direção política do governo de Boris Johnson. Frost renuncia ao cargo numa altura em que decorrem negociações sobre aplicação do protocolo para a Irlanda do Norte. A tensão com a França (imigrantes e pesca) agrava-se, com acusações de Paris sobre "conversa dupla" de Londres. O ministro do Interior francês, Gérald Darmanin, em entrevista ao "Guardian", disse que a França não era um "vassalo" do Reino Unido. "As relações são boas quando falamos em privado. Quando algo é dito em público, na Câmara dos Comuns ou nas redes sociais e na imprensa, há uma diferença de tom que se torna fortemente hostil ... e muitas vezes é o oposto do que foi dito em privado". A carta de Boris Johnson para Emmanuel Macron, pedindo à França que faça mais para impedir as travessias do canal, incluindo permitir que as forças britânicas patrulhem as áreas costeiras francesas, deixou Paris em estado de fúria. Boris está a perder a mão na gestão da pandemia: perdeu popularidade e autoridade.
10. E a Europa, senhores?
Resta apenas um país europeu no Top5 das maiores economias mundiais (a Alemanha, em quarto). No início deste século havia três (Alemanha em terceiro, Reino Unido em quarto, França em quinto), no início da década, por 2010, havia dois (Alemanha em quarto, França em quinto). A China, que começou o século em sétimo, saltou para segundo em dez anos e manteve a posição nesta década, embora muito mais perto da liderança e com muito maior avanço sobre o terceiro. O Brexit agravou esta tendência de insignificância europeia. E ainda não aprendemos a lidar com isto.
11. A ameaça autocrática
Anne Applebaum escreveu ensaio que fez capa na edição de dezembro da "The Atlantic" em que sentenciava: "The bad guys are winning" (Os tipos maus estão a vencer). Apareciam cinco caras: Vladimir Putin, Xi Jinping, Nicolas Maduro, Aleksandr Lukashenko, Recep Erdogan. Joe Biden assumiu-se como líder das democracias liberais, no combate à ascensão das autocracias. A ideia faz sentido, a forma como a pode concretizar é que já é mais discutível (como se viu na Cimeira para as Democracias, com escolhas de presenças e ausências, no mínimo, discutíveis). E dentro de sua própria casa ainda tem muito trabalho pela frente: os Estados Unidos juntaram-se a uma lista anual de democracias "retrógradas" pela primeira vez, de acordo com o Instituto Internacional para Democracia e Assistência Eleitoral (IDEA), "think tank" com sede em Estocolmo. O estudo do IDEA aponta para uma "deterioração visível" que começou em 2019. Em todo o mundo, mais de uma em cada quatro pessoas vivem em uma democracia retrógrada, proporção que sobe para mais de dois em cada três com o acréscimo de regimes autoritários ou "híbridos". "Este ano, identificámos os Estados Unidos pela primeira vez, mas os nossos dados sugerem que o episódio do retrocesso começou pelo menos em 2019", disse o órgão no seu relatório intitulado "Estado Global da Democracia 2021. "Uma viragem histórica veio em 2020-21, quando o ex-presidente Donald Trump questionou a legitimidade dos resultados das eleições de 2020 nos Estados Unidos", aponta o relatório.
12. O trauma do Afeganistão
Até à queda de Cabul, as coisas corriam globalmente bem a Joe Biden. Depois da humilhação americana de 15 de agosto de 2021, com a tomada galopante da capital afegã por parte dos talibãs -- apesar das juras do Presidente dos EUA, um mês e uma semana antes, de que tal não iria acontecer - a agulha virou. Entendamo-nos: a consumação da saída do Afeganistão foi uma decisão correta e corajosa. Joe Biden, quarto Presidente da mais longa guerra de sempre dos EUA, recusou-se a passar a batata quente para um quinto. A leitura da Administração Biden sobre não querer cair no erro de adiar uma retirada inevitável estava correta. Não haveria boa saída para uma guerra que já não tinha propósito. Terá sido melhor sair agora, com risco, do que sair daqui a um, dois, cinco ou dez anos - com ainda mais riscos e mais tempo somado aos custos financeiros gigantescos, às perdas humanas e ao desgaste da opinião pública. O problema foi tudo o resto. Falhou a relação com o poder afegão em fuga. Falhou a preparação dos soldados afegãos que assegurariam a transição para uma saída digna antes do avanço talibã. Terá falhado a inteligência. Fazia todo o sentido o Afeganistão não estar no topo da agenda de política externa da Administração Biden. O problema é que, depois de 15 de agosto, passou a estar. Em política, nenhuma decisão é inócua.
13. AUKUS, o "game change"
A aliança estratégica, militar e tecnológica entre Austrália, Reino Unido e Estados Unidos foi a maior novidade da política internacional em 2021. O AUKUS revela a grande necessidade que Washington sente de reforçar a sua posição no Indo-Pacífico. Mas isso não significa uma abdicação norte-americana da frente atlântica. A conclusão é tentadora, mas assimétrica. Mesmo em declínio, o poder americano é ainda tão grande que não implica escolhas exclusivas. O momento exige maior foco na construção de novas alianças para travar a China. A relação transatlântica, mesmo em crise, é mais duradoura. Os últimos anos mostraram-nos que já obriga a opções difíceis - mas ainda não chegámos ao ponto de ver Washington num dilema de escolher entre "a Europa" e "a Ásia". A narrativa mais recente pode ser essa, mas uma visão a mais longo prazo mostra-nos que o reforço estratégico no Indo-Pacífico começou há mais de uma década, no primeiro mandato presidencial de Barack Obama, com Hillary Clinton a chefiar o Departamento de Estado. Mas isso não significou o adeus americano à Europa.
14. Brasil entre Lula e a ameaça de golpe militar pela via presidencial
Em outubro de 2022 saberemos se Jair Bolsonaro consegue segundo mandato ou se Lula voltará ao Palácio do Planalto. Não serão os únicos candidatos, mas a polarização política deve reforçar este duelo. O governador de São Paulo, João Dória (PSDB), o ex-ministro da Justiça e juiz Sérgio Moro (Podemos) e o ex-governador do Ceará, Ciro Gomes (PDT), podem angariar votações interessantes, mas só deverão ter relevância quanto a um possível apoio para o segundo turno, caso ele exista. Por enquanto, as sondagens dão grande vantagem ao antigo operário "pêtista" e indicam que a base do ainda Presidente Bolsonaro é demasiado baixa para lhe projetar a reeleição. Mas cuidado: o Brasil não tem as instituições democráticas e judiciais tão sólidas como têm os EUA. Bolsonaro já insinuou que não aceitará uma derrota nas urnas, agita a falácia da "fraude" e não hesitará em usar os militares para se recusar a abandonar o poder. Ai Brasil, Brasil.
15. A pandemia eterna
Enquanto não se resolver a vacinação dos países em desenvolvimento, deveremos estar condenados a este "iô-iô" de abre e fecha, relaxa e aperta, descansa e assusta. Novas variantes como a Omicron vão surgir - e ninguém, mesmo ninguém, faz ideia se corremos o risco de apanhar com alguma muito mais letal do que estas que, até agora, se limitaram a uma mortalidade na casa dos 2% (no momento em que escrevo morreram até agora de COVID em todo o mundo 5,35 milhões de pessoas, num total de 275 milhões de infetados).
16. A Índia e o trunfo populacional
Ao contrário da China, a Índia não tem um projeto de expansão global - mas tem um dos pontos fulcrais para o poder nos próximos anos: população. A Índia termina 2021 com 1,37 mil milhões de pessoas - já muito próximo dos 1,4 mil milhões da China e mais de dez vezes que os 330 milhões dos EUA. Se em Pequim a política de famílias pequenas e poucos filhos, para travar o crescimento explosivo, na Índia isso está longe de acontecer. Na próxima década, os indianos passarão a ter o país mais populoso do mundo. No início do século, a Índia era a 14ª maior economia mundial. Há uma década era a 12ª. Hoje já é a quinta, com 3,73 mil milhões de euros - à frente da França (2,9 mil milhões de euros), do Reino Unido (2,8 mil milhões de euros), da Itália (2, 07 mil milhões) e do Brasil (2,02 mil milhões) e já não muito longe da Alemanha (4,26 mil milhões) e do Japão (5,1 mil milhões). Já agora: os CEO do Twitter (Parag Agrawal), Google (Pichai Sundararajan), Adobe (Shantanu Narayen), Microsoft (Satya Nadella), Vimeo (Anjali Sud), Flex (Revathi Advaithi), Palo Alto Networks (Nikesh Arora), Micron Technology (Sanjay Mehrotra), Net App (George Kurian) e Microship Technology (Steve Sanghi) são indianos. Sim, o futuro está na Índia.
17. Finalmente percebemos a emergência climática
Foi um verão terrível de eventos extremos (quase 50 graus em cidades do Canadá e da Costa Pacífica dos EUA; incêndios devastadores na Califórnia; cheias e inundações na Alemanha e na Áustria, com várias mortes a lamentar). Nos EUA, um terço dos condados sofreram em 2021 algum evento disruptivo para as populações: um turfão, um tornado, cheias, incêndios. Dezembro começou com o assustador Quod State, provavelmente o maior tornado alguma vez registado em território norte-americano, que fez desaparecer cidades e vilas do Kentucky. "É um compromisso, mas não é suficiente". António Guterres, Secretário Geral da ONU, começou a COP26 com palavras muito duras e alarmistas ("estamos a cavar a nossa própria sepultura") e terminou-a de forma um pouco mais branda, mas igualmente preocupante: "O acordo reflete os interesses, as contradições e o estado de vontade política do mundo hoje. É um passo importante, mas não é o suficiente. É hora de ligar o modo emergência". O caminho para a redução até 1,5 graus ainda é longo, mas não saiu comprometido. O financiamento da descarbonização dos mais pobres foi consagrado, mas também está longe de estar assegurado (100 mil milhões ainda é pouco). Índia e China esvaziaram grandes metas no carvão e subsídios a combustíveis fósseis, embora não se tenham posto totalmente de lado. O texto estabelece a necessidade de redução global das emissões de dióxido de carbono em 45% até 2030, na comparação com 2010, e de neutralidade de libertação de CO2 até 2050. Um dos maiores avanços foi a obrigação dos países renovarem objetivos todos os anos, em vez de ser apenas de cinco em cinco anos. Para o ano, em Sharm el-Sheikh, há mais.
18. A primazia da Tecnologia (já a olhar para o 6G)
2021 acelerou a vitória da Tecnologia. 57% da população mundial utiliza pelo menos uma rede social (4,5 mil milhões de pessoas). O Facebook continua a ser líder (2,9 mil milhões), sendo que o país com mais utilizadores é a Índia (350 milhões, quase o dobro dos 194 milhões dos EUA; o terceiro lugar é surpreendente -- Indonésia, outro país a olhar com atenção nos próximos anos, 143 milhões). O You Tube 2,3 mil milhões, WhatsApp tem 2 mil milhões. Messenger e Instagram têm, cada um, 1,3 mil milhões de utilizadores. Quase nesse patamar está já o We Chat (o "whatsapp chinês"), com 1,2 mil milhões. Por "universos" de plataformas media, a Meta de Zuckeberg lidera (7,5MM), mas a segunda já é a Tencent chinesa (WeChat+QQ+QZone), com cerca de um terço do que tem a Meta. E da China há outros dois universos social media em forte expansão: o ByteDance, proprietário do Tik Tok (mil milhões de utilizadores) e do Douyin (menos conhecido no ocidente, mas com mais de 550 milhões de utilizadores na Ásia), e a Sina (detentora do Weibo, uma espécie de Instagram chinês, também com mais de 550 mil milhões). O 5G (a "internet das coisas") foi a batalha política dos últimos anos entre EUA e China. Vai agora chegar às mãos dos utilizadores. Segue-se o 6G (a "internet dos sentidos"), cujas licenças deverão abrir por 2028/2030. A China já vai à frente: tem 40% das patentes até agora. Os EUA 35%, o Japão 10%.
19. Elon Musk Personalidade do Ano para a TIME (e não um grande líder político)
Lembram-se das estatísticas sobre a desigualdade na distribuição expostas no ponto? Pois, se vivemos cada vez num mundo dominado "por ricos", se calhar até faz sentido eleger Elon Musk, que em 2021 se distanciou no estatuto de homem mais abastado do mundo, a Personalidade do Ano, como fez a TIME. Mas não deixa de ser inquietante. Joe Biden contesta a aversão de Musk aos sindicatos e fez questão de deixar a Tesla de fora da sua estratégica de promoção dos carros elétricos. A senadora Elizabeth Warren reagiu assim quando soube: "Homem do ano? Elon, convém primeiro que comece a pagar impostos a sério". Pode ser o mais rico, mas o que Musk não é de certeza o mais bem-educado. Respondeu assim a Bernie Sanders, depois do senador democrata do Vermont, outro "campeão da esquerda progressista", ter dito que "os muito ricos têm que dar o seu contributo justo à sociedade". Molly Ball, Jeffrey Kluger e Alejandro de la Garza, na peça da TIME, explicam a escolha: "O homem mais rico do mundo não é dono de uma casa e recentemente vendeu a sua fortuna. Põe satélites em órbita e usa o sol; dirige um carro que criou que não usa gasolina e quase não precisa de motorista. Com um movimento do seu dedo, o mercado de ações dispara ou desmaia. Um exército de devotos paira sobre as suas declarações. Sonha com Marte enquanto cavalga a Terra (...) Este é o homem que aspira salvar o nosso planeta e nos dar um novo para habitar: palhaço, génio, visionário, industrial, showman; um híbrido maluco de Thomas Edison, P.T. Barnum, Andrew Carnegie e Watchmen"s Doctor Manhattan, o taciturno homem-deus de pele azul que inventa carros elétricos e se muda para Marte. A sua "start up" de foguetões, SpaceX, ultrapassou a Boeing para ser dona do futuro das viagens espaciais da América. A Tesla controla dois terços do mercado multibilionário de veículos elétricos em que foi pioneira e está avaliada em um bilião de dólares. Isso fez de Musk, com um património líquido de mais de 250 mil milhões de dólares, o cidadão privado mais rico da história, pelo menos no papel. Aposta em robôs e implantes solares, criptomoeda e clima, cérebro-computador para afastar a ameaça da inteligência artificial e túneis subterrâneos para mover pessoas e cargas em super-velocidades."
20. A disrupção da distribuição
FMI a reduzir previsões de crescimento. Falta de chips de computador. Congestionamento portuário épico. E uma grave escassez de camionistas, sobretudo no Reino Unido. As delicadas cadeias de abastecimento do mundo estiveram, nos últimos meses de 2021, sob stress extremo, ressuscitando o fantasma da inflação. A recuperação económica pós-covid desacelerou. A Moody's Analytics alertou que as interrupções na cadeia de suprimentos "ficarão piores antes de melhorar". Excerto do relatório Moody"s: "À medida que a recuperação económica global continua ganhando força, o que fica cada vez mais aparente é como ela será bloqueada por interrupções na cadeia de suprimentos que agora surgem em cada esquina". Na China, a atividade industrial caiu de 50,1 para 49,6 entre setembro e outubro, depois de meses de recuperação na produção. Nos EUA, a Administração Biden intensificou esforços para aliviar o pesadelo da cadeia de abastecimento. A Moody's citou a falta de um "esforço global combinado para garantir o bom funcionamento" da rede mundial de logística e transporte. Mera perturbação passageira? Esperemos que sim.
21. Os desafios para 2022
E 2022? Vai mostrar-nos sinais fundamentais. Será que o mercado de trabalho vai normalizar, ou vão as restrições para travar a Omicron reavivar a tendência identificada no final do verão nos EUA (4,3 milhões de americanos optaram por abandonar o emprego em agosto de 2021)? Terá sido um sintoma dos novos hábitos ditados pela pandemia e a forma como o teletrabalho abriu outras possibilidades de escolha. Em março, o Supremo Tribunal dos EUA tomará decisão definidora: vai ou não revogar a lei "Roe vs Wade", que desde os anos 70 garante, no plano federal, o direito ao aborto nos EUA. Será que o avanço de legislação proibitiva em estados como o Texas vai contagiar a posição dos juízes do Supremo, numa altura em que a composição é de 6-3 para os conservadores? Também na América, nos próximos meses avança a "Truth Social" (Verdade Social), rede de comunicação da "Trumposfera", gerida pelo lusodescendente Devin Nunes, com o intuito de dar gás a uma possível candidatura presidencial de Donald Trump em 2024. Interessa também ver que resultado terão as intercalares de novembro. Os republicanos têm aspirações fundadas de recuperar o controlo das duas câmaras do Congresso. E, caso isso aconteça, muitos antecipam um cenário de pesadelo para a segunda metade deste mandato presidencial de Joe Biden: paralisação legislativa, ameaça de "impeachment", apelos a regresso de Trump à Casa Branca. Já vimos este filme - e não é bonito.