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Por vezes é útil olhar para o passado e para aquilo que aprendemos em momentos complexos e extremos da história, sobretudo num tempo em que tendemos a avaliar de forma apressada tudo aquilo que nos rodeia. Filósofa aguda e ainda hoje polémica, a judia Hannah Arendt foi uma das pensadoras que tentou analisar os processos políticos e comportamentais que antecederam o holocausto. Pouco importa se o conceito de banalidade do mal seria afinal do marido, porque foi sua a apresentação e defesa pública dessa expressão, sendo acusada de com isso minimizar a responsabilidade individual de quem executou as ordens superiores nos campos de extermínio.
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Hannah Arendt não tentou justificar a barbárie. Longe disso. Procurou, isso sim, analisar o caminho de desumanização que a produziu. Ao longo do tempo os judeus, os ciganos, os homossexuais e outros alvos da ideologia nazi foram sendo desprovidos de direitos, reduzidos à sua condição física e animalesca. A vida nos campos foi essa constante tentativa de retirar aos prisioneiros qualquer centelha de humanidade. Da forma como eram expostos enquanto meros corpos à impossibilidade de fazerem qualquer escolha livre, há uma estratégia que os reduz a números despidos de tudo o que os tornaria pessoas.
A desumanização é um processo extremamente perigoso a que deveríamos estar atentos numa altura em que o terror volta a ser radical no Médio Oriente. Por muito que se assista à redução do debate entre trincheiras, entre quem está de um lado e quem está de outro, importa perceber os mecanismos de sucessiva retirada de direitos, de redução de vítimas a números, de omissão ou apagamento de imagens, de desinformação e falseamento de dados para justificar a violência. Não é por acaso que ouvimos líderes políticos referirem-se a inimigos como animais. Estão a ser praticados e justificados crimes que são, na sua base, contra a consciência de humanidade.
Recuperar o conceito de banalidade do mal pressupõe, adicionalmente, sair do terreno do conflito armado e perceber como o risco de desumanização pode minar-nos em temas aparentemente inócuos do quotidiano. Quando os discursos extremistas se referem a imigrantes como seres desprovidos de direitos, ou consideram que um assaltante merece castigos desproporcionais, estão a desencadear interpretações justificativas da agressão ao outro. O mal, muito mais do que tantas vezes nos damos conta, está realmente banalizado entre nós.
