"A Opinião" de Nádia Piazza, na Manhã TSF.
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Em pequena, o desafio com que eu e o meu mano mais novo nos entretínhamos a jogar - e nessa altura não havia internet, mas sim volumes de enciclopédia - resumia-se a saber o nome de todas as capitais dos países pelo mundo afora, o continente a que pertenciam, a língua e moeda oficial, os maiores rios. Essas coisas.
Era o nosso entretenimento, sobretudo naquelas horas e dias intermináveis de viagem a cobrir milhares de quilómetros pelo Brasil. Era como passávamos as horas no banco de trás de uma 'pickup', tendo como fundo paisagens intermináveis que já conhecíamos, meio a um calor abrasador e tempestades tropicais de fim de tarde.
Foi nessa idade que ouvi pela primeira vez falar de Moçambique e de Maputo. Nem eu sonhava, naquela idade, que Moçambique significaria tanto para aqueles que foram - e nunca deixarão de ser - também a minha família em Portugal.
Sobretudo a cidade da Beira, cidade natal do pai do meu filho e cidade de acolhimento dos seus avós, que de lá regressaram em 1975, e que, com ele, não quis vir o criado, que era como da família.
Dele contavam que dizia:«Nhã, sinhô! Não bati no minino!» Incrédulo com os modos europeus, agarrava no menino, apeava-o na garupa da sua bicicleta e lá iam os dois dar uma volta à beira-mar.
Passei serões a ouvir falar dessas histórias, do especial amor que aquele povo tem pelas suas crianças, do costume entre os homens de andar de mãos dadas pela rua, das cervejas que se pediam e os camarões que as acompanhavam... tremoços de cá.
O sentimento de liberdade que se conseguia manter, perante a longínqua ditadura.
A Beira, a segunda cidade depois de Maputo, muito orgulhosa da sua zona portuária e da central de caminhos-de-ferro, onde o avó do meu filho trabalhou tantos anos.
Pergunto-me se o edifício restará de pé?
A cidade da Beira, linda, espraiada e risonha para o Índico, agora é feita de caos, desmantelada e estraçalhada por um ciclone de nome Idai, que entrou pela África Austral com ventos na ordem dos 177km/h, destruindo 90% da cidade e deixando, segundo a UNICEF, 260 mil crianças desalojadas e em grave risco de vida.
Até agora, foram mais de 200 mortes confirmadas em Moçambique, mas o número pode passar os mil.
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Idai, como mais devastador do que o furacão Katrina, apanhando de frente países pobres, de casas feitas de lata e placas de zinco, sem qualquer capacidade de reação ou abrigo. Aldeias inteiras foram engolidas literalmente por uma parede de água e, agora, restam ilhas e corpos a flutuar.
Ilhas de sobreviventes amontoados.
Ilhas de pessoas esfomeadas e enregeladas em telhados de edifícios prestes a ruir, em árvores. E já vão dias!
Equipes da BBC na Beira relatam que os moradores mal tiveram chance de lidar com o luto, estando desesperados por comida, abrigo e roupa.
Moçambique chama por nós, com voz fraca de quem está ilhado a ver a hora da morte chegar. Nessas horas, não me atenho à minha perda, à minha revolta com a gestão dos donativos em Portugal, mas pela próxima criança que pode ser salva.
Parte de Moçambique colapsou, restou a capital é certo, mas a brincadeira de criança de outrora exige agora um gesto humano responsável de quem conhece mais e dói-lhe maior ver o desespero de um seu igual.