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Esta semana a frágil democratização da Birmânia (Myanmar) sofreu um grande revés. Os militares voltaram ao centro do poder, detiveram Aung San Suu Kyi e outros membros da Liga Nacional para a Democracia e decretaram o estado de emergência durante um ano. A narrativa dos militares tem contornos que nem um dos melhores argumentistas de Hollywood conseguiria inventar. Podemos começar com a justificação para a necessidade deste golpe pelos militares. Na sua perspetiva as eleições de Novembro do ano passado não foram livres e justas. Parece irónico, mas os militares invocaram uma alegada «fraude eleitoral» (expressão que depois de Donald Trump passou a ter um outro alcance) e outras irregularidades. E depois temos de olhar para o crime de que Suu Kyi é acusada, pois nada mais nada menos do que ter na sua posse rádios que terão sido importados de forma ilegal. O alegado crime é ridículo, tal como é absurda a acusação feita pelas autoridades russas a Alexei Navalny nos últimos dias. Repito, nem Hollywood.
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Evidente é a enorme dificuldade que os militares têm de partilhar o poder face à popularidade da Liga Nacional para a Democracia. Em Novembro, este partido foi reeleito (eleições anteriores tinham sido em 2015) de forma muito expressiva. A nível interno, e ao contrário do que aconteceu com a sua imagem internacional, a líder Suu Kyi mantem a sua popularidade. A vencedora do Prémio Nobel para a Paz em 1991 foi muito criticada pela sua actuação (ou melhor não actuação) face aos horrores cometidos sobre os Rohingyas em 2017 pelas Forças Armadas do seu país. A matança, as violações, as torturas levaram cerca de 740 000 Rohingyas a fugirem (ou a conseguirem fugir) para o vizinho Bangladesh. Uma situação humana e humanitária dramática e que foi objecto de forte condenação internacional, ao contrário do que fez e disse Suu Kyi. Nesse sentido, e ao contrário de 2011 quando a reaproximação aos EUA feita pela Birmânia tinha como trunfo o prestígio de Suu Kyi, a articulação dos esforços internacionais não será feita com o mesmo entusiasmo.
A nível internacional as respostas foram diversas. De um lado, temos a China que impediu no Conselho de Segurança da ONU uma resolução de condenação ao golpe de estado e que tem investimentos importantes na Birmânia, nomeadamente, os pipelines de gás natural e de petróleo. Do outro lado, temos uma nova Administração em Washington que assumiu o «regresso» da Democracia e dos Direitos Humanos à política externa e, nesse sentido, o golpe de estado foi condenado (igualmente pelo G7 e pela UE) e foi anunciada uma revisão da relação bilateral. Mais ainda, temos na equipa de Joe Biden duas figuras que foram importantes na elaboração do «Pivot para a Ásia-Pacifico» (depois Indo-Pacífico) da Administração Obama: Kurt Campbell e Jake
Sullivan. O modo como a China e os EUA irão lidar com a Birmânia dar-nos-á pistas interessantes sobre o equilíbrio de poder entre estes dois rivais.
*A Autora não segue o novo acordo ortográfico