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Quando ouviram as sirenes, Ira e a mãe continuaram a fazer o jantar. Depois de um mês de bombardeamentos, o som das sirenes era apenas mais um toque. Três minutos depois, as explosões, mesmo ao lado de casa, levaram-nas a pensar duas vezes. Correram para o bunker. Os disparos atingiam o prédio, o fogo não parava. Mesmo atrás de Ira e da mãe, estava Tatiana. Quando se atirou para o interior do abrigo, já tinha sido atingida numa perna. Sangrava sem parar e nenhum dos que ali estava refugiado conseguiu ajudar a estancar o sangue. Um rapaz foi chamar os militares. Demoraram 15 minutos a chegar, debaixo de fogo. Quando entraram, Ira segurava a mão de Tatiana. Não se conheciam antes. Tatiana, de 28 anos, não sobreviveu aos ferimentos. Morreu no abrigo, diante de todos os que conseguiram entrar antes dela. Ira nunca lhe largou a mão.
Tatiana foi sepultada num dos parques da cidade, transformado em cemitério. A cidade de Chernihiv esteve cercada 39 dias. Morreram 700 civis.
Quinta-feira, no Parlamento português, Volodymyr Zelenski não vai, seguramente, contar esta história. Mas podia. Podia contar esta e mais uns quantos milhares de histórias parecidas, de Sergys, Andriis, Oksanas, Olenas, Tatianas, e de outros, muitos outros cidadãos com nome próprio. Eram civis, desarmados, jovens e velhos, homens e mulheres. Ou podia contar as histórias não da vida, mas da morte de crianças, mais de duzentas, desde 24 de fevereiro.
Quando se dirigir aos deputados de Portugal - depois de uma longa lista de outros parlamentos e instituições internacionais onde já interveio - Zelenski deverá, por certo, saber, que o PCP votou contra a sua intervenção no plenário. A esta hora, não há certezas se, em «coerência», os seis deputados comunistas estarão no hemiciclo. Ou não.
Tal como noutras alturas da história do século XX, provavelmente, o coletivo na Soeiro Pereira Gomes aguarda «ordens de Moscovo».
A narrativa russa não contempla histórias de pessoas singulares e vistas individualmente, como Tatiana. Que, aos 28 anos, morreu assassinada, porque a cidade onde sempre viveu foi bombardeada pelas forças que estão «apenas» a levar a cabo uma «operação militar especial». Quando se fala no coletivo, tudo é relativo, nada é individualizado. Quando se dirigir ao coletivo dos deputados, o presidente ucraniano estará, também, a falar individualmente para todos e para cada um. Para cada consciência. E, falando em nome de todo o seu povo, representa um coletivo que é feito de um conjunto individual de cidadãos, de pessoas com nome, com rosto, com uma história de vida que, ou acabou de repente, ou que ficará marcada para sempre.
Não há nenhuma «operação militar especial». Há uma guerra sangrenta, violenta e cruel. Uma invasão de um país soberano por outro país soberano. Uma ocupação à margem do direito internacional, que começou, no caso ucraniano, em 2014. Uma ofensiva militar desproporcionada, que quebra todas as regras, escritas e não escritas, da guerra e que ataca indiscriminadamente civis, crianças, escolas, hospitais, maternidades, bairros residenciais e outras estruturas sociais; um ataque sem explicação, que espalha a destruição, reduz cidades a escombros, estradas a crateras e parques infantis a cemitérios.
Zelenski poderá dizer tudo isto e muito mais. Mas nada do que possa afirmar o presidente ucraniano fará com que, na Soeiro Pereira Gomes ou em Moscovo, aquilo a que se costuma chamar «ortodoxia» dê lugar a uma visão do mundo que não seja a de 1989.