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A filosofia tem, ao longo dos séculos, feito reflexões profundas sobre a estupidez humana, não como traço de caráter ou característica individual, mas como "estrutura do pensamento enquanto tal", para usar o conceito de Gilles Deleuze. Ou seja, trata-se de considerar, por oposição à crença cartesiana na razão, que há traços de animalidade e até bestialidade que nos acompanham desde sempre e por vezes se sobrepõem à racionalidade. Como muito bem sintetiza Heidegger, "o homem pode pensar na medida em que tem possibilidade de o fazer, mas tal possibilidade não é uma garantia de que seremos capazes de a realizar". Conseguimos pensar, temos instrumentos para pensar, mas nem sempre o fazemos.
Estamos demasiado preocupados em calcular a que pedaço da lei ou da argumentação nos agarramos para prosseguir a vida com alguma normalidade.
Num discurso intitulado "Serenidade", Heidegger faz a distinção entre o "pensamento que calcula" e o "pensamento que medita", dizendo que temos falta do segundo, em detrimento do primeiro. Acho esta formulação muito curiosa aplicada aos tempos estranhos que vivemos. Tempos em que os comportamentos diários trazem à tona a questão de alguma estupidez ou bestialidade, parecendo que estamos demasiado preocupados em calcular a que pedaço da lei ou da argumentação nos agarramos para prosseguir a vida com alguma normalidade, mas incapazes de meditar sobre o que coletivamente significa o abismo em que estamos a mergulhar.
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De nada adianta proibir ou vigiar, porque não há polícias que cheguem para todos os cidadãos, enquanto não nos consciencializarmos de que temos de nos policiar a nós mesmos.
Sendo agora menos resguardada pela defesa da filosofia e indo diretamente ao ponto: atingimos um momento trágico de evolução da Covid em Portugal, mas parecemos estupidamente adormecidos. Discutindo brechas na lei, com metade do país a gritar que se feche tudo, e outra metade a seguir placidamente o seu caminho. Com autarcas a falar em pessoas que alugam cães para passear. Com protestos porque já não se pode beber o cafezinho ao postigo. Com teorias que continuam a negar a gravidade deste vírus, a compará-lo com a gripe e a achar que as medidas são exageradas. De nada adianta proibir ou vigiar, porque não há polícias que cheguem para todos os cidadãos, enquanto não nos consciencializarmos de que temos de nos policiar a nós mesmos.
Os erros na gestão e comunicação de crise não justificam a irresponsabilidade individual. Haverá sempre desculpas, se cada um não quiser fazer a sua parte.
Não quero com isto dizer que não se pode criticar o Governo. Pode, porque são muitas as falhas. Ainda há duas semanas disse aqui que o Governo avaliou e agiu tarde quanto aos efeitos da abertura no Natal. E volta agora a demonstrar descontrolo, corrigindo medidas demasiado confusas e abertas poucos dias depois de as aprovar. Não alinho na teoria de que em tempos de crise não se deve criticar quem governa. A união e coesão social de que precisamos não apaga o sentido crítico e a necessidade de constante revisão do rumo que estamos a tomar, quando ele se revela errado.
Os erros na gestão e comunicação de crise não justificam, contudo, a irresponsabilidade individual. Haverá sempre desculpas, se cada um não quiser fazer a sua parte. As escolas poderão servir de alibi para continuar a haver muita circulação de pessoas, as exceções à lei permitirão sempre encontrar argumentos para andar na rua, tudo dará motivos a quem procura não ver o óbvio: o que está a faltar é autocontenção. É a perceção do estado em que estão os números de infeções e de mortes, o cenário de hecatombe nos hospitais, a exaustão e desespero dos profissionais de saúde. O que está a faltar é a capacidade de sermos solidários num esforço que é crucial para que a catástrofe a que já assistimos diariamente não se arraste semanas a fio. Só uma total insensibilidade e estupidez nos pode levar a manter, com tudo o que já sabemos sobre o vírus e sobre as medidas de proteção após quase um ano de pandemia, comportamentos de risco que põem em causa a segurança de todos.
