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1.
Há alguns dias, a caminho do trabalho, ao passar na estação do cais do Sodré, em Lisboa, ouvi ao longe o choro intenso de um bebé. Um choro angustiado de abandono.
Um pouco assustado, fui atrás do choro para perceber o que era.
Junto do bebé vi uma pessoa vidrada no seu telemóvel - quem nunca - e com ela o bebé já crescido, entre os dois e os três anos. Chorava bem alto. A pessoa só retirava os olhos do telefone para lhe dar palmadas nas pernas e o mandar estar calado.
A criança chorava para pedir atenção. Não sei se era uma birra monumental, se eram dores, se era fome.
No cais do Sodré estão sempre alguns agentes da PSP. Fui ter com três que estavam juntos. Um deles vidrado no telemóvel e em serviço - quem nunca - outro a comer um lanche, outro atento ao redor, mas era impossível que nenhum dos três não estivesse a ouvir o choro.
Contei a situação que testemunhei. Um dos agentes disse-me que era uma situação privada, em contexto de educação. Contrapus que não deixava de ser uma agressão.
Os polícias nada fizeram. E eu, covarde, também nada fiz. Acabei por não abordar a pessoa, resignado com o argumento de que aquele comportamento podia ser educação.
A situação não me saiu da cabeça.
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A jurisprudência portuguesa aceita sem questão que os castigos corporais são proibidos desde 2007.
O Comité dos Direitos da Criança define os castigos corporais como a utilização da força física para causar algum grau de dor ou desconforto, mesmo que de forma ligeira. A maior parte dos castigos corporais envolve bater numa criança, com a mão ou com um objeto. Mas também pode envolver, por exemplo, pontapear, abanar ou projetar uma criança, arranhando, beliscar, morder, puxar cabelos, puxar as orelhas, forçar as crianças a ficar em posições incómodas, queimar, escaldar ou forçar a ingestão de especiarias picantes ou água com sabão.
O código penal português prevê que o castigo físico a crianças é um crime classificado a várias dimensões: violência doméstica, maus-tratos, ofensa à integridade física simples, grave ou qualificada, conforme as circunstâncias previstas nos artigos 143 a 145.
Segundo a convenção dos Direitos da Criança, todos os castigos corporais são proibidos e isso é claro nos artigos 19 e 37; e Portugal é signatário desta convenção.
Era isto que eu gostava de ter dito quando podia ter ido falar com a senhora, quando fui falar com os agentes da PSP.
2.
Esta semana falou-se muito da "influencer" mãe que orgulhosamente descrevia episódios de tortura à sua filha para, segundo a própria, a educar.
Muitos influencers de educação parental nas redes sociais são, na maior parte dos casos, vendedores de banha da cobra, não são especialistas de coisas nenhuma e em vez de ajudar, só fazem sentir aos pais - os que lutam dia após dia para trabalhar, cuidar dos filhos, cozinhar refeições saudáveis fugindo tanto quanto possível da comida processada tão disponível nos supermercados - se sintam uma fraude, impostores que não estão à altura por mais que se esforcem nunca conseguirão a perfeição descrita nas redes e cumprir a beleza dos pratos fotografados.
Estamos numa sociedade de extremos. Mas não pode haver extremo aqui: a "palmada" não pode servir para educar. O castigo físico não deve ser normalizado. Não estou aqui a julgar impaciência dos pais, as dificuldades que temos em respirar fundo, em dar atenção. O tempo de bater, de agredir, tem de passar à História.
3.
Deixo um apelo neste tempo de verão e de férias de tantas pessoas. Neste tempo mais calmo, aproveite para se distanciar de telemóveis, de trabalho, de tudo o que lhe roube tempo ao mais importante. Tente viver no presente, consigo e com os seus. Tente dar e receber atenção. Converse, ouça, explique, acarinhe. Nunca desista disto. É o que irei tentar também.
Se todos tentarmos, mesmo aqueles e aquelas que ainda acreditam nessa falácia da palmada educativa, vão ver que não é preciso tal coisa absurda de bater em alguém, muito menos em quem tanto amamos.
Educar sem violência, é construir um mundo de paz, é garantir que podemos acreditar e ensinar a paz, para um mundo, finalmente, sem guerras.
Para aprofundar o assunto, partilho alguns links que me inspiraram e serviram de fonte para este texto:
Conselho da Europa: "A abolição dos castigos corporais infligidos às crianças - Perguntas e Respostas". Página consultada a 21 de julho de 2023
Instituto de Apoio à Criança: Campanha "Nem mais uma palmada". Página consultada a 21 de julho de 2023
