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A solidariedade com Marcelo Rebelo de Sousa manifestada por António Costa e reforçada pelo Partido Socialista, no dossiê dos abusos de menores na Igreja Católica Portuguesa, pode ser vista como uma absoluta necessidade de preservar o normal funcionamento das instituições, garantindo que o Presidente não fica sem chão. Conseguiu o seu efeito! Depois do primeiro-ministro ter considerado "inaceitável" a interpretação generalizada, entre os partidos e os comentadores, de que Marcelo estava a desvalorizar o número de crimes que membros da Igreja cometeram contra crianças, as críticas baixaram de tom. A seguir, Marcelo pediu ele desculpa às vítimas que se tivessem sentido ofendidas e o caso podia ser dado por encerrado.
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Acontece que a defesa de Marcelo feita por Costa labora num equívoco. Ninguém acusa o Presidente de total insensibilidade com o sofrimento das vítimas, a crítica a Marcelo faz-se pelo facto do Chefe de Estado ter desvalorizado o número de denúncias já validadas pela Comissão Independente. Quatrocentas e vinte e quatro. A maioria dos que criticam o Presidente pode até não ver intencionalidade nessa desvalorização, mas o contexto em que ela acontece permite pensar que sim, pode ter havido intencionalidade de desvalorizar como forma de preservar a imagem da Igreja. Sim, a instituição Presidência pode ter sido usada por Marcelo para defender a instituição Igreja.
Vamos então a uma rápida análise do contexto.
Quando, há menos de um ano, a Conferência Episcopal Portuguesa se decidiu finalmente pela criação de uma comissão independente para investigar os crimes sexuais na Igreja havia muitos bispos que estavam contra. Aqui mesmo, na TSF, D. Manuel Linda considerava que a necessidade de criar essa comissão era igual à necessidade de criar uma comissão para estudar os efeitos da queda de um meteorito na cidade do Porto. O bispo do Porto não estava, nem está, sozinho, outros bispos entendem que não deveria haver uma comissão específica para a Igreja porque o fenómeno é transversal a toda a sociedade. Optam por desvalorizar o problema na Igreja julgando que, desta forma, defendem melhor a instituição. O Presidente da República, usando o seu testemunho pessoal para abonar a favor de D. José Policarpo, já falecido, e D. Manuel Clemente, num caso de ocultação de uma denúncia, também estava a fazer uma opção.
Recentemente, Marcelo Rebelo de Sousa, no podcast de Francisco Pinto Balsemão, assumiu-se próximo da Opus Dei e da Comunhão e Libertação, duas organizações católicas muito conservadoras. Saúda-se igualmente a abertura do Presidente para dar a conhecer os seus caminhos como católico providencialista, de alguém que acredita que tudo acontece por providência divina. Ao pedir desculpa às vítimas que possam ter ficado ofendidas, Marcelo quis fazer uma referência à Comunicação Social para lembrar o óbvio direito à crítica. O que o Presidente precisa de lembrar é que é mais do que um direito, é uma obrigação dos democratas escrutinar a ação presidencial para garantir que a instituição Presidência não está ao serviço da instituição Igreja, ou de uma parte dela. Não chega optar por dar a conhecer as suas opções de vida como católico, é preciso aceitar que a análise política que é feita da sua atuação como Chefe de Estado, um Estado laico, resulte de toda a informação que se conhece.
Ninguém vê em Marcelo um homem insensível, mas é possível ver um político imprudente.