Corpo do artigo
Corriam os anos sessenta do século XX.
O meu avô, homem possante do trabalho na terra, saiu da sua aldeia beirã rumo a outras oportunidades que tirassem a sua família da pobreza a que estava condenada tanta gente no Portugal da ditadura.
Ainda que não comparável, essa pobreza ainda hoje persiste e terá sempre caminho para isso enquanto a injustiça social de então também o tiver.
É dele que me lembro ao sentar-me em casa da Dona Maria e ao escutá-la.
Casa é como quem diz. São umas paredes, cheias de humidade no bairro da Trafaria, em Almada. Vive rodeada de escombros e do bulldozer que está a fazer as demolições e com o seu peso a causar desabamentos de todos os entulhos que depois recolhe.
Conversámos baixinho porque um dos netos, bebé ainda, dormia na cama da mesma divisão onde estávamos e que era quarto, cozinha e sala.
A Dona Maria veio para Portugal há 22 anos para fugir da pobreza. Sempre aqui trabalhou. Já com netos, ainda trabalha, muito.
Mesmo assim não conseguiu nunca sair da barraca em que vive e que agora será demolida e só não o foi ainda por uma providência cautelar que depois de apreciada pela Justiça, não deixou que a Câmara Municipal local fizesse dela sem-abrigo, bem como às duas filhas e netos. O mais pequenino tem 5 meses. Nasceu em Portugal, mas é apátrida. Só lhe darão documentos se o bebé tiver passaporte do país onde não nasceu: a Guiné-Bissau.
TSF\audio\2022\10\noticias\22\22_outubro_2022_a_opiniao_de_pedro_neto_a_pobreza_a_que_nao_se_escapa
A Dona Maria trabalha há treze anos num dos restaurantes na Costa da Caparica. Muito provavelmente quem visitou aquela praia e por lá fez alguma refeição já terá beneficiado do seu saber à cozinha. Do seu gosto, sensibilidade e profissionalismo.
A sociedade beneficia da Dona Maria, mas mesmo assim não lhe permite sair e escapar da pobreza.
Segundo a Pordata, ela faz parte dos 4,5 milhões de pessoas que em Portugal sobrevive afogada na pobreza, sobrevive a uma economia que esmaga com trabalho, mas não recompensa o necessário. O que ganha, não chega, não lhe dá amparo, como ela diz.
As ajudas do Estado reduzem este número para pouco menos de 2 milhões de pessoas. No entanto estas ajudas são em parte pensões de pessoas que antes até descontaram. Por isso é difícil quantificar o que é de facto ajuda ou retribuição do que se descontou.
Qualquer um dos números é esmagador. Quase metade das pessoas em Portugal vive na pobreza e é esta pobreza que permite uma riqueza contrastante de um país paradisíaco a estrangeiros de visto gold. É esta a pobreza com que entramos e vivemos a crise energética e a crise social que já aqui está.
Uma economia que mata depende de pobres, deixa a Dona Maria enredada numa sociedade onde a escravatura da pobreza inescapável ainda teima em não ser abolida.
Há 22 anos que a Dona Maria corre e trabalha para fugir da pobreza. Mas a pobreza, essa besta, nunca a deixa escapar.
