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Na série House of Cards há uma cena notável em que Frank Underwood, o infame Presidente americano na série, assume a natureza amoral da política, mas, ao mesmo tempo, a apresenta como desejada por todos. Falando primeiro para os outros políticos e depois para todos nós, Frank Underwood diz-nos que aquele político que detestamos é aquele que temos promovido. Um político disposto a fazer tudo o necessário para ter o poder, mas não para fazer algo nobre em nome do poder. Um político apreciado não pelo que defende, mas pela forma como defende o seu poder. Esse é o político apresentado como admirado e desejado num contexto em que as pessoas deixam de acreditar no bem comum. Não palavras da Frank Underwood: "Bem-vindos ao fim da idade da razão. Não há certo ou errado, há apenas estar dentro ou estar fora."
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Os dados de um estudo de opinião recente, que indicam que metade dos portugueses estão disponíveis para aceitar um líder autoritário, voltaram a trazer-me esta cena à memória. Essa disponibilidade é a evolução natural de uma admiração política que se foca na eficácia do político mais do que no que este defende. Hannah Arendt notou isso na adesão da opinião pública às figuras autoritárias do século XX europeu. Muitos começaram por ser populares. As pessoas desvalorizavam, quando não aceitavam, as suas mentiras em nome da eficácia. Pelo contrário, tais mentiras, enganos e traições eram antes confirmação do génio tático de tais políticos. Tudo o necessário, a qualquer custo, provava a sua força de vontade. Que fosse tudo o necessário mesmo quando eticamente condenável tornou-se irrelevante desde que eficaz.
Não gosto muito de dramatizações e acho que, quando excessivas, são contraproducentes. Não vou dizer que estejamos à beira de regressar ao período negro do século XX. Mas temo que a série House of Cards tenha alguma razão quando alerta para o fim da idade da razão. Estamos próximos do fim da crença na política como uma forma racional de descobrir o nosso bem comum, reconciliando as nossas diferenças, para ser cada vez mais uma mera competição para ver quem beneficia ou não do poder.
Infelizmente, a política à portuguesa favorece esta conceção da política. Há alguns anos disse que o comentário político português se focava sobretudo na "pontuação artística". Um político é avaliado mais com base no sucesso político ou eleitoral das suas propostas do que no real mérito dessas propostas. Naturalmente que os políticos, para fazerem a diferença, necessitam de saber comunicar e transmitir o que pretendem com eficácia. Mas a função principal dos comentadores não deve ser avaliar desta eficácia, mas sim informar e discutir sobre o mérito das próprias propostas. No entanto, um político que consegue impor uma má política é elogiado como "um grande político", enquanto um político ineficaz na defesa de uma boa proposta é facilmente destruído. O problema é que, desta forma, se eleva a tática, a qualquer custo, a principal qualidade política. Quando assim é, o bem comum perde cada vez mais centralidade na política e esta é cada vez mais um mero jogo de poder.