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Foram precisas mais de 40 horas para, em escassos dois minutos, Jair Bolsonaro falar finalmente após a derrota eleitoral, sem ter a humildade de a reconhecer, e deixar nas entrelinhas a certeza de que vai tentar aproveitar até ao limite a energia que lhe continuam a depositar nos protestos de rua. Embora prometendo cumprir a Constituição, o ainda presidente do Brasil justificou as manifestações como sendo "fruto de indignação" pela forma como decorreu o ato eleitoral, voltando a escolher a insinuação e o jogo em vez de contribuir para apaziguar um país que já merecia entrar no tempo da pacificação.
Já todos sabíamos que Bolsonaro não iria aceitar facilmente a vitória de Lula da Silva, que se recusou a felicitar. Depois de uma campanha em que se esforçou por desacreditar o processo eleitoral, era temida a contestação. O silêncio de quase dois dias alimentou os bloqueios promovidos por apoiantes e é pouco claro o caminho que o Brasil tomará nos próximos dias, apesar das garantias de que se irá iniciar a transição de poder.
Analistas internacionais veem nas meias palavras de Bolsonaro a tentativa de jogar com a única carta que lhe resta, a dos protestos e manifestações. Assim que deixar o cargo, o chefe de Estado sabe que corre o risco de perder a imunidade e de ser visado em múltiplas investigações por suspeitas de corrupção, comportamento antidemocrático e responsabilidades na gestão desastrosa da pandemia de covid.
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Apesar de ser tão pesada a sua herança, nem assim o bolsonarismo foi severamente castigado nas urnas. Os extraordinários 58 milhões de votos, depois de uma campanha degradante, são mais uma evidência de que nunca a democracia está conquistada. Os sinais vão-se sucedendo em diferentes pontos do globo, com uma agressividade que desarma qualquer tentativa de minimizar o fenómeno.
Na curta intervenção de ontem, Bolsonaro afirmou-se favorável a "manifestações pacíficas" e considerou que limitar o direito de circulação é um método próprio da esquerda. Não que haja confusão possível entre ideologia e ilegalidade, mas é-lhe conveniente parecer que condena os abusos ao mesmo tempo que continua a fazer estragos.
Faz parte da linguagem política estar carregada de metáforas bélicas. A construção democrática é um combate permanente e são muitas as armas utilizadas para fazer valer, aos olhos dos eleitores, aquelas que se acreditam ser as melhores soluções. As fronteiras são, ainda assim, claríssimas. Não há lutas legítimas à margem da lei nem dos valores fundamentais inscritos na Constituição.
A política é a procura do bem comum. É esse o combate que se trava em democracia e nele não há espaço para a raiva, para a intolerância, para a destruição do outro. Em Bolsonaro, como em Trump e tantos outros ditadores travestidos de democratas, é o ódio que comanda. Não há dúvidas sobre as escolhas que se impõem sempre que o ódio está no comando.
