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A reportagem da Al-Jazeera sobre o Chef André Bayala tem quase um mês, mas taticamente guardei o tema para mais tarde, podendo assim assinalar o início da "silly season" com um "tira-gosto", como se diz no Brasil, exótico e doce.
O Chef Bayala, único chocolateiro burquinabé, não aparenta ter mais de 40 anos e chegou ao chocolate da forma mais inusitada possível. Enquanto jovem estudante, frequentou um colégio de "padres brancos", como disse, na sua aldeia natal chamada Reo. O ano da semi-descoberta aconteceu em 1978. À saída das aulas, Bayala e os seus colegas tinham por hábito atiçar os cães da Missão Católica onde estudavam e os padres costumavam atirar guloseimas aos cães para os acalmarem/distraírem. Num desses momentos, Bayala ganhou coragem e decidiu apanhar um desses bombons e provar. Derreteu-se todo com o novo paladar, registou-o e só em 1990 é que soube que se tratava de chocolate! É a partir daí que inicia a sua demanda chocolateira, procurando respostas sobre a origem do mesmo e como se fabricava. Filho de mãe e pai cozinheiros em restaurantes locais, viu essa tarefa facilitada muito antes do advento da internet.
É a partir daqui que a política se mistura com o chocolate, já que ao perceber o circuito do cacau que vai no sentido da Europa, para regressar a África transformado em chocolate, levantou uma bandeira do Presidente Thomas Sankara (1984/1987), o "Che Guevara burquinabé" que transforma o Alto Volta em Burkina Faso (1984) e que dizia "consuma o que produz, produza o que consome". Esta referência deu-lhe ânimo para passar a comprar o cacau na Costa do Marfim e no Gana e a transformá-lo em Ouagadougou, a capital do Burkina, onde estabeleceu a sua "pastelaria-padaria-chocolataria" aberta ao público, democratizando também o consumo do chocolate até então um produto considerado de luxo e exclusivo das elites. Ao fazer isto e no acto da transformação do cacau em chocolate, também lhe passou a conferir uma identidade, já que lhe adiciona produtos locais. Há mesmo uma tablete de "chocolat noir 54%", embrulhada em papel com a cara do Presidente Sankara! Desta forma, "les tablettes Bayala" mantêm vivo o sonho de uma África auto-suficiente, que se alimenta a si própria, uma das bandeiras do marxista Sankara, que só no seu primeiro ano de presidência plantou 10 milhões de árvores para combater a desertificação do território.
Do chocolate à guerra da Ucrânia, o Chef Bayala faz referência nesta reportagem da Al-Jazeera à impreparação da Rússia e da Ucrânia para o confronto e lamenta ver África dependente destes
dois, referindo-se à questão do fornecimento dos cereais a África, que volta este Julho a ser cavalo-de-batalha entre russos e ucranianos. Enquanto isso, Bayala segue a cartilha de Sankara e substitui o trigo pelo sorgo vermelho, branco e por painço, não parando de produzir pão, alheio aos confrontos entre os "brancos tecnológicos", confirmando hoje, na prática, o que o seu Presidente referência teorizava há 40 anos.
Este pleno sankariano "Chez Chef André" deverá ser atingido no próximo ano, quando as árvores de cacau que tem plantadas no seu quintal começarem a dar frutos. André Bayala faz através do chocolate, aquilo que políticos e militares nunca conseguiram através da burocracia e das armas. Provar que África pode ser auto-suficiente e que a democracia também pode começar à mesa. Haja cacau, vontade e motivação!
A Acontecer / A Acompanhar
- Todos os domingos, na Telefonia da Amadora, entre as 21h e as 22h, Programa "Um certo Oriente", apresentado pelo Arabista António José, um espaço onde se misturam ritmos, sons e palavras, através das suas mais variadas expressões, pelos roteiros do Médio Oriente e Ásia