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Pensar que nos estamos a adaptar aos novos tempos é mesmo uma ingenuidade de todo o tamanho. Como se tivéssemos tido escolha ou algo a dizer sobre isso. Não tivemos outra hipótese. Foi uma violência. É demasiadamente perigoso pensar o contrário. Não nos protegemos eficazmente e agora estamos cheios de vírus nas nossas vidas. Sabemos mais ou menos a altura e onde os apanhámos; mas não lembramos muito bem de quando ou em que companhia. Muitas vezes estávamos somente a carregar em teclas, outras íamos jurar que tínhamos o telefone bloqueado. Comprámos cenas que não devíamos, demos conversa a quem não merecia e se calhar... pior ainda.
A última vez que "vimos" alguns dos nossos amigos foi quando os bloqueámos no face, apesar de há umas semanas, sem telefones à mistura, termos conversado e rido. A última vez que olhámos para uma mulher foi no Instagram e a última coisa que comemos já vinha gelada. Pedimos pela net. Foi tão fácil, mas mesmo tão fácil que até assusta. Juntaram-se uns miúdos na Universidade na América e, boom!, estimularam-nos exatamente no ponto. Não tiveram dificuldade alguma em encontrá-lo. Ele esteve lá sempre. A História passada, recente, a mesma história de sempre, disse-lhes tudo quanto precisavam saber. O comportamento dos Homens fez o resto. Toparam logo que o que o pessoal queria era aparecer. Fizeram-nos pensar que partilhar era tudo. Enquanto os filhos cresciam, toda gente os via, menos a família. Venderam-nos #momentos que nem lembraríamos não fosse o Instagram. Levaram-nos a crer que todos temos um talento, comprovado apenas por um compromisso numérico em forma de coração. Gostar nunca foi tão fácil.
O muro apareceu, nem foi preciso mão-de-obra ou materiais caros para o construir. Foi de borla. E é erguido cada vez que tiramos uma foto de um concerto em vez de o vermos com os olhos de bem ver. Apanharam-nos pela vaidade e deram-nos um lago bem fundo para refletirmos. Agora é deixarmo-nos cair. Começaram-nos por dizer que éramos todos amigos mas só nos perguntam o que queremos dizer ou fazer para atingir os nossos clientes.
Na verdade, nunca ninguém foi verdadeiramente responsabilizado pelas casualidades civis da Internet. Pelos acidentes, pelos suicídios, pelas famílias separadas. Até aí acertaram, os génios das redes. Depois da vaidade: o livre-arbítrio. Só partilhar o que queremos, quando queremos. Tão simples. O poder de desligar. Como o poder de deixar de fumar ou de beber. Tão simples. Apesar da tortura. Tornaram-nos no objeto perfeito do capitalismo. Numa grande rede de cabecinhas num quadrado, remexendo no mercado onde tudo se compra, vende, onde tudo se mostra. Sem alternativas, vivemos uma escravidão feliz. Mostra-me o teu decote, olha os meus músculos, mostra-me as tuas rugas, qualquer rabo tem mais seguidores que o melhor dos músicos. #SóDeusmepodejulgar.
A fome mundial já não nos preocupa. Isso era nos anos Oitenta. Agora mete-nos nojo quem chupa o Sumol pela palhinha e come sandes de panado na estação de serviço. Não sabemos bem o que somos, o que fazemos, mas também não aceitamos definições. Só sabemos que somos ou melhores ou piores. Existimos apenas por comparação. Como o clima, estamos sem meia-estação.
Não temos tempo para nada, mas temos todo o tempo para isso mesmo. Vamos à casa de banho e demoramos horas de calças em baixo a vermos gatinhos online. Enquanto ferve o esparguete mandamos piadas aos amigos no WhatsApp. Levamos um livro para a piscina mas estamos sempre ao telemóvel. Enquanto o nosso filho janta, enquanto ele aprende, enquanto o mundo respira, já ninguém sabe o sentido da pausa, não deixamos que o mundo nos deixe nem por cinco minutos.
E é no face app, aplicação da moda que nos mete velhos e grosseiros, que podemos ver o retrato fiel do que está por dentro desde que abrimos as portas a estes salteadores e com eles nos deitámos na nossa cama sem sequer lhes perguntar ao que vinham.