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O regresso da despenalização da eutanásia ao Parlamento estava anunciado e não há motivo para qualquer estranheza quanto ao calendário escolhido. A votação de maio de 2018 terminou com um resultado muito próximo da aprovação (a diferença foi de apenas cinco votos) e sobretudo criou as bases para uma discussão pública que deve ser tão ampla e aprofundada quanto possível.
O quadro político mudou em outubro, com uma composição parlamentar virada à Esquerda e com um PSD também mais alinhado com o tema - basta recordar que o próprio Rui Rio, que na anterior votação não era deputado, é favorável à despenalização. Aliás, aos projetos de lei do BE, PS, PAN e PEV juntou-se desta vez mais um, do lado oposto do hemiciclo, elaborado pela Iniciativa Liberal. Perspetiva-se uma aprovação, sem grandes sobressaltos, de uma solução que venha a consensualizar os aspetos comuns às diferentes propostas.
É neste quadro que a Igreja Católica está já a mobilizar-se a favor de um referendo que não queria, no passado, admitir e a desdobrar-se em declarações: o cardeal patriarca rejeita abordagens de "ânimo leve", o bispo do Porto aponta o referendo como caminho para promover o debate público, o bispo de Aveiro alega que a defesa da vida não é simplesmente uma questão religiosa, só para citar algumas das declarações mais recentes. A Federação Portuguesa pela Vida está a ultimar pormenores processuais e começa em breve a recolher assinaturas para exigir um referendo com o qual tentará suspender o processo legislativo.
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Já Marcelo Rebelo de Sousa mantém-se evasivo sobre o tema, lembrando todos os passos necessários - incluindo aguardar os pareceres do Conselho Nacional para as Ciências da Vida - mas evitando esclarecer a sua posição se e quando um eventual diploma lhe chegar às mãos. Não se pronuncia "até ao último segundo", afirma o presidente da República.
A promessa de retomar o assunto no arranque da legislatura foi feita com clareza.
Há dois argumentos que têm sido constantemente invocados sempre que se apresentam propostas sobre a morte medicamente assistida. Um deles é de que ainda não se fez um amplo debate nacional sobre a matéria e, neste caso, de que o agendamento da votação no dia 20 de fevereiro está a ser feito à pressa. A promessa de retomar o assunto no arranque da legislatura foi feita com clareza e não há qualquer segredo ou surpresa nesta apresentação de propostas, que de resto passam por demorados trabalhos na especialidade após a votação inicial. O debate tem sido cíclico e foi aprofundado em 2018, altura em que se percebeu que havia um amadurecimento da discussão e capacidade de refletir sobre os problemas e riscos que têm sido suscitados noutros países, particularmente na Bélgica, em que a eutanásia está longe de ser uma exceção e foi inclusivamente aberta a menores de idade.
Claro que num tema tão fraturante é sempre possível entrar a pés juntos, com chavões como a defesa da vida em contraponto à liberdade individual absoluta, mas algo tão complexo e sensível deve obrigar-nos ao bom senso. Não faz sentido entrar nem por simplificações nem por fantasmas lançados de forma irresponsável. É imperativo ouvir o mais possível os contributos técnicos e sobretudo olhar para as experiências já existentes e aprender com elas.
O direito de optar pela morte assistida deve ser exercido quando tenham sido esgotadas todas as opções.
Um segundo argumento faz, a meu ver, mais sentido e não devemos fugir dele: o de que há muito a fazer a montante, na rede de cuidados paliativos. É verdade que são duas discussões diferentes e que o direito de escolha não está dependente de haver ou não garantia de acesso a cuidados adequados em fim de vida. Mas vale a pena refletir que, a ser aprovado, o direito de optar pela morte assistida deve ser exercido quando tenham sido esgotadas todas as opções. Logo, num quadro em que o doente possa ter beneficiado dos melhores cuidados médicos em todas as fases. O que não pode é haver escolhas feitas porque falham cuidados essenciais num período de grande fragilidade física e emocional - e infelizmente sabemos que muitas vezes falham.