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A escritora Lídia Jorge, li no Diário de Notícias, ficou contente quando viu as estátuas de Lénine derrubadas em Budapeste nos anos da queda do bloco soviético. Mas não ficou nada satisfeita com a vandalização feita, há dias, à estatua em Lisboa do Padre António Vieira.
Ela explica a sua posição assim: "Compreendo esses momentos da história em que a mensagem iconográfica seja tão forte e tão repulsiva que derrubem as estátuas".
Isto quer dizer que, para Lídia Jorge, derrubar a estátua de Lénine em Budapeste, nos anos 90 do século passado, quando a União Soviética caiu, correspondeu a um momento histórico, pelo menos para a Hungria, onde se justificava o derrube da estátua do líder da Revolução Russa.
Isto também quer dizer que, para a mesma Lídia Jorge, o momento histórico que vivemos não justifica, em nome da luta antirracista, manchar a homenagem lisboeta ao Padre António Vieira.
O que se conclui é que para a escritora, como, suponho, para muita boa gente, incluindo eu próprio, há momentos na vida coletiva em que as estátuas de homenageados do passado podem ser derrubadas pela rejeição que causam às pessoas do presente, mas também há estátuas que não devem ser derrubadas, mesmo que o momento político vivido pela coletividade possa de alguma forma justificar essa vandalização.
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O critério para derrubar estátuas é, portanto, puramente discricionário: umas vezes sim, outras vezes não, conforme a sentença de cada cabeça sobre o personagem retratado num pedestal público. Não há ciência histórica nisto, há mas é política.
No mesmo Diário de Notícias li ontem, no site, a notícia da inauguração da primeira estátua alguma vez erguida na Alemanha Ocidental (a parte da Alemanha que ficou fora da influência soviética) em homenagem a Vladimir Ilyich Ulianov, ou seja, ao mesmo Lénine da Revolução Russa que Lídia Jorge viu, com alegria, ser derrubado em Budapeste.
O poder de ser eterno, em princípio, é coisa de domínio dos deuses, mas pode estar figurativamente acessível aos terrenos se estes, simplesmente, mandarem fazer ou pagarem esculturas das suas próprias figuras. A pedra e o bronze asseguram essa perenidade.
É por isso que vemos constantemente estátuas de homenagem a poderosos, a milionários e a beneméritos - desde o simples busto, colocado num jardim, de um rico que doou um hospital, até a um rei que mandou reconstruir toda uma cidade, como vemos no Terreiro do Paço, em Lisboa, com a estátua equestre de D. José, feita por Machado de Castro.
A estátua é, entre outras coisas, uma forma de tentar atingir a eternidade e de controlar a memória coletiva, e essa tentativa não é uma ambição exclusiva dos indivíduos, é também uma ambição dos regimes, dos estados, do coletivo.
As estátuas das figuras da política, da cultura, do empresariado e até de anónimos são afirmações públicas do Estado, dos seus representantes ou de grupos de pessoas relevantes na sociedade que tentam perpetuar no tempo uma forma de vida, uma ideia de nação, uma organização de classes, uma maneira de exercer o poder político e de gerir os mecanismos de relações sociais que acham ser a melhor e que acham que merecem ser preservadas.
No caso da nova estátua de Lénine, na Alemanha, o movimento que decidiu erguê-la neste ano de 2020, quase 30 anos depois da queda do regime que ele fundou, teve origem num pequeno partido político, o Partido Marxista-Leninista da Alemanha.
A estátua de Lénine, agora numa rua de Gelsenkirchen, tinha sido retirada das ruas da antiga Checoslováquia e foi ontem inaugurada por 800 pessoas, que andavam a tentar colocá-la na via pública da cidade alemã há já bastante tempo - e, para isso, tiveram de vencer em tribunal as tentativas de proibição lançadas pelos partidos tradicionais alemães.
Lídia Jorge, há 30 anos, viu o derrube das estátuas de Lénine como, uso as palavras dela, a queda de "uma coisa prepotente".
A presidente do partido que agora inaugurou na Alemanha a estátua de Lénine, Gabi Fechtner, define-o como "um pensador à frente de seu tempo, de importância histórica mundial, um combatente pela liberdade e pela democracia".
Gabi não se esqueceu das estátuas que andam a ser derrubadas pelo mundo e também disse que "a era dos monumentos em homenagem a racistas, antissemitas, fascistas, anticomunistas e outras relíquias do passado ficou claramente para trás".
Lídia Jorge viu há 30 anos, na Hungria, um ato de justiça no derrube das estátuas de Lénine.
O presente que Gabi Fechtner vê hoje na Alemanha torna justo para ela a inauguração de uma estátua do mesmo Lénine.
Vivemos, portanto, um tempo de guerra de estátuas e, desconfio, nos dois lados das barricadas, dos que procuram o poder da eternidade e o domínio da memória dos povos, a luta continua... e é a mesma luta de sempre.