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Dificilmente poderia ter corrido melhor para Kamala Harris. Dificilmente poderia ter corrido pior para Donald Trump.
Se o que estava em causa era saber se a candidata democrata estaria à altura de um debate presidencial, a ainda vice-presidente de Joe Biden passou o teste com distinção.
Só não chega à nota máxima porque, na questão do “fracking” (muito relevante na Pensilvânia), Harris não foi convincente e agravou a ideia de “flip-flop” em relação ao que defendia em 2019.
Mas, em quase tudo o resto, Kamala esteve muito bem: competente na entrega da mensagem, segura, sólida, com a lição bem-estudada e as respostas certas na ponta de língua. No ponto a atingir os temas fracos de Trump.
“Harris teve o debate que queria. Se, depois disto, ela não estiver em condições de avançar para a liderança nas sondagens, nem que seja só por um pouco, talvez isso signifique que o país não está disposto a comprar o que ela tem para vender”, notou, nos minutos seguintes ao final do duelo da Pensilvânia, o especialista Nate Silver, famoso por ter acertado em quase todos os estados nas últimas três eleições presidenciais.
Se Kamala não bater Trump a 5 de novembro, não será pelo que fez esta madrugada. A democrata surgiu especialmente eficaz, naquela que terá sido a melhor noite da sua carreira política. Notou-se logo a abrir: a democrata toma a iniciativa, surpreende o adversário e estende-lhe a mão. Trump ainda hesitou, mas retribuiu (terá percebido o perigo que seria não o fazer). E ainda levou com mais uma iniciativa inesperada da adversária. “Sou Kamala Harris, vamos lá ter um bom debate.”
O tom estava traçado: manteve-se ao longo de toda a peleja. Kamala dominante, a controlar a discussão, a marcar posição de ser a candidata da reconciliação e do futuro. Trump relutante, por vezes irritado, às vezes até perdido.
Donald Trump teve um trambolhão quase tão grande como o que Joe Biden sofreu a 27 de junho. Perdeu largamente (63-37, CNN Instant Poll) um debate que precisava de vencer.
Bom desempenho, ótima preparação
O sucesso de Kamala foi um misto de bom desempenho com ótima preparação. Resultou de um trabalho eficaz de uma equipa altamente profissional. O falhanço de Donald resulta de uma excessiva confiança em torno de um candidato egocêntrico, que seca tudo à volta. Espaventou com o risco do “comunismo”, o “aborto aos nove meses” e a “execução de bebés”.
Kamala até começou ligeiramente nervosa, notava-se na respiração e na verbalização desconfortável de algumas palavras. Mas sempre bem no conteúdo, cada vez melhor na forma à medida que foi aquecendo.
Harris assumiu-se como “vinda da classe média”. Joe Biden reagiu assim: “A América pôde ver esta noite a líder com quem tive o orgulho de trabalhar por três anos e meio. Nem sequer foi renhido. A vice-presidente Harris provou que é a melhor escolha para liderar a nossa nação rumo ao futuro. Não voltaremos atrás.”
Também Barack Obama elogiou o desempenho de Harris: “Será a Presidente de todos os americanos e para todos os americanos. Esta noite vimos em primeira mão quem tem uma visão e quem tem a força para levar o nosso país para a frente em vez de nos dividir.”
Josh Shapiro, governador democrata da Pensilvânia, preterido por Kamala em favor de Tim Walz, ficou entusiasmado: “Depois do debate desta noite, Kamala Harris limpou a névoa cerebral lembrando ao povo americano o registo do antigo Presidente Trump. Ela lembrou-nos de como ele é “nonsense” e como é divisivo.”
Até o painel da FOX News concedeu a vitória a Kamala Harris. Esclarecedor.
Trump preso às suas mentiras
Trump insistiu na mentira de que não perdeu em 2020. Kamala replicou: “Foi despedido por 81 milhões de americanos."
Fez-se de sonso e jurou que nada teve a ver com o ataque ao Capitólio (“a culpa foi de Nancy Pelosi e do mayor de Washington DC”) nem com o Project 2025, o plano ultraconservador da Heritage Foundation que pretende tomar conta do poder na América através de Trump e onde 140 antigos elementos da Administração Trump ou das candidaturas presidenciais de Trump. Mentiu descaradamente ao alegar que na presidência Biden se registou a maior inflação de sempre (nos anos Reagan era mais do dobro). No tema Israel/Hamas, Trump divergiu para a Rússia/Ucrânia: “Comigo a guerra nunca tinha acontecido, eu conheço Putin muito bem.”
A tudo isto Kamala ripostou com uma sólida defesa da democracia. Será essa, de novo, a chave para travar Trump?
E depois apareceu Taylor Swift
Em mais uma prova da competência da campanha dos democratas, nos minutos seguintes ao fim do debate vitorioso para Kamala, Taylor Swift declarou finalmente o que já (quase) toda a gente suspeitava: "Vou votar em Kamala Harris e Tim Walz", anunciou em publicação em que se fez fotografar exibindo um gato vistoso. "Penso que ela é uma líder sólida e dotada que pode levar este país a mais conquistas, se formos guiados pela calma e não pelo caos (...) Fiz a minha pesquisa e assumi as minhas escolhas. Caberá a vocês fazerem a vossa própria pesquisa e a escolha será sempre vossa. Também quero dizer aos primeiros votantes: lembrem-se que para votar têm de se registar!", assinando "childless cat lady", numa óbvia alusão à tirada de JD Vance.
Quanto valerá a Kamala o apoio de Swift?
Parceria TSF/JN com a FLAD-Fundação Luso-Americana para o Desenvolvimento