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Fosse outro o tempo, fosse outro o contexto, fosse outro o presidente da república e fosse outro o primeiro-ministro e, provavelmente, a esta hora estaríamos em campanha eleitoral para eleições legislativas. Por muito menos do que aconteceu a semana passada, um presidente utilizou o seu poder de dissolução, a chamada bomba atómica, dissolveu um parlamento suportado por uma maioria estável e convocou eleições. O conceito de «regular funcionamento das instituições», como outros conceitos vagos do direito e da lei, permitem «interpretações» em cada momento, em cada circunstância e leituras pessoais dos que, na altura, ocupam os cargos para o quais foram eleitos.
Por muito que Costa diga, com ar triunfal e até satisfeito, que «está restabelecida a orientação do governo», por muito que o ministro peça desculpas pelo «tremendo erro», mesmo que ambos queiram dar uma ideia de que tudo acabou e está bem, sabemos, todos, que na verdade, não só não acabou, como não esta tudo bem.
No esticar de corda entre o ministro e o primeiro deles, ambos saem a perder. O ministro, porque traiu o seu líder de governo, porque não mereceu a confiança que nele foi depositada, porque criou uma crise política inaudita depois de três meses de maioria absoluta, porque desdisse aquilo que todo o governo tinha decidido. O Primeiro-Ministro porque não foi capaz de ter mão nos seus ministros, porque foi obrigado a despachar em sentido contrário ao seu ministro, porque não teve a decência, a coragem e o decoro de demitir o seu ministro. Na prova de força entre ambos, saem os dois a perder. Porque, repito, este «episódio» não só não será esquecido, como vai ser recordado pelos portugueses e pela oposição sempre que se falar do tema do novo aeroporto.
Costa pode, por momentos, achar que saiu por cima, ao ver o seu ministro de voz grossa e certezas absolutas, ter vindo dizer ao país, mansinho como um cordeiro, que cometeu um erro, pedir desculpas e fazer juras de amor incondicional ao primeiro-ministro, ao partido e ao governo. Mas Costa, que optou pela velha máxima de ter o inimigo por perto, não percebeu que para lá do calculismo, do tacticismo e da conjuntura, o país lhe cobrará para sempre esta cobardia e que não lhe perdoará ter sido desautorizado e nada ter feito. Manter o ministro no governo é, para além de mais um malabarismo tático, um mau exemplo para dentro do governo, mas, sobretudo, para o país.
Já agora, também é absolutamente lamentável que, no momento de «assumir o erro», o ministro tenha optado por «uma declaração sem direito a perguntas», falando sozinho e fugindo ao contraditório. Esta figura da «declaração», é própria de quem não tem coragem de enfrentar as perguntas, de quem teme dar explicações e de quem não está confortável com a situação. Na verdade, o ministro, nessa explicação, nada explicou. Limitou-se a repetir frases previamente estudadas por um consultor de comunicação. Não explicou porque tomou a iniciativa quando sabia que o primeiro-ministro tinha mandado esperar. Porque revelou um plano que ainda não era conhecido e que deveria ter sido comunicado a outros protagonistas, nomeadamente o PR. Porque aproveitou a ausência do chefe do governo para fazer o assalto ao aeroporto. E, por fim, por que razão continua a ser ministro. Já que não foi demitido, não será este um ministro laico, republicano e socialista que, na boa tradição apregoada, deveria, depois do que fez, ir embora o mais depressa possível, quanto mais não fosse para não se fragilizar a si mesmo, ao primeiro-ministro e ao governo? Mais uma vez, temos um ministro que já não é ministro. Como aconteceu com Constança Urbano de Sousa, Azeredo Lopes, Eduardo Cabrita...
Marcelo tem as mãos atadas. Não demite ministros. Lembrou o óbvio e, também por isso, o ministro deveria ter saído pelo seu próprio pé. «A responsabilidade é do Primeiro-Ministro», disse o Presidente. Às vezes, recordar o obvio tem esta vantagem - a da simplicidade, da clareza e da decência.
