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Este comentário pode envelhecer mal. É o que acontece quando tentamos prever o que vai acontecer num contexto muito instável e com informação altamente imperfeita. Falo da invasão da Ucrânia pela Rússia. Neste momento, as coisas parecem a estar a correr de forma bem diferente do que o Putin esperava. De forma pior para ele e melhor para a Ucrânia e o resto do mundo, ainda que através de uma enorme tragédia.
Putin parece, por um lado, ter sobrestimado o apoio interno à guerra e a disponibilidade do povo e soldados russos para esta guerra e, por outro lado, ter subestimado, quer a resistência ucraniana, quer a reação das opiniões públicas ocidentais.
Putin julgava que o seu compromisso e resiliência perante os custos da guerra seria bem superior ao compromisso dos líderes europeus para com as sanções económicas perante os custos que também terão para a Europa. E, inicialmente, assim pareceu. As sanções europeias (e americanas) eram sobretudo individuais e bastante seletivas, não substancialmente diferentes das que não produziram grande efeito na Bielorrússia por exemplo. Inicialmente começou-se também por excluir o apoio militar à Ucrânia.
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Foi a pressão das opiniões públicas ocidentais que levou os seus governos a adotar medidas bem mais fortes de apoio à Ucrânia e de sanções à Rússia. Fundamental para esta pressão tem sido o Presidente da Ucrânia. Munido de um smartphone mobiliza o seu povo e as opiniões públicas ocidentais e através do Twitter confronta os líderes ocidentais diretamente com as suas responsabilidades. Esta é uma guerra em que a comunicação ocorre de uma forma e ritmo totalmente diferentes do passado, mudando o próprio curso e velocidade da própria guerra.
A grande dúvida, neste momento, é se a resistência ucraniana, perante o expectável agravamento da força russa, durará o suficiente para as sanções económicas poderem produzir efeito antes de a Europa e o mundo ocidental perderem o seu compromisso e empenho para com a Ucrânia. Putin acredita, seguramente, que quanto mais cedo criar uma realidade de facto no terreno que lhe seja favorável mais rapidamente o mundo perderá interesse na Ucrânia e não quererá continuar a pagar o preço das sanções.
A Europa pode, se não perder esse compromisso moral, impor um custo enorme à Rússia: basta deixar de se abastecer energeticamente na Rússia. Quase um terço do orçamento anual da Rússia são receitas provenientes do petróleo e gás. Destas, praticamente 50% são pagas pela Europa. A Europa paga mais à Rússia anualmente em gás e petróleo do que a Rússia gasta com o seu exército.
Só que cortar esta dependência terá um enorme custo para a Europa. Dificuldades de abastecimento para alguns países (40% do Gás na UE vem da Rússia; 60% na Alemanha ou 20 % na Itália por ex.) e preços muito mais caros para todos.
Isso explica a resistência europeia inicial a sanções mais fortes. Mas a pressão das opiniões públicas mudou isso. As sanções mais recentes incluem a interrupção do sistema Swift dificultando as transações financeiras da Rússia com uma grande parte do mundo e, em consequência, dificultando exportações e importações para o país. Mas talvez ainda mais importante venham a ser as restrições no acesso do Banco Central Russo às suas reservas. Estas são fundamentais para, por um lado, ocorrer a necessidades do sistema financeiro e prevenir uma corrida aos bancos e, por outro lado, intervir nos mercados cambiais em apoio da moeda nacional (evitando uma excessiva desvalorização e a inflação consequente). O simples anúncio dessas sanções parece ter já produzido alguns desses efeitos, como se viu com a corrida aos bancos de ontem na Rússia ou a enorme desvalorização do Rublo.
Ao mesmo tempo, os russos parecem ter previsto esse risco. Desde 2014 (quando ocuparam a Crimeia) que têm vindo a alterar a composição das suas reservas para ficarem menos dependentes das divisas do mundo ocidental. Se terá sido o suficiente veremos. Mas essa preparação desde 2014 também nos diz outra coisa preocupante: há muito que Putin planeava isto. Esperemos que esse planeamento não contasse com a resistência ucraniana, com a reação de solidariedade do resto do mundo ou até a oposição de boa parte do próprio povo russo e que estas vontades sejam mais fortes do que a tirania de Putin.