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Os partidos de Esquerda cometeram um incompreensível disparate político ao tentarem impedir as intervenções dos deputados únicos nos debates quinzenais. A questão não é de regimento, uma mera desculpa formal. Claro que faz sentido alterá-lo e adaptá-lo à nova realidade, já que todo o sistema tem estado desenhado à medida dos partidos tradicionais, mas nada impede que até essa mudança das regras parlamentares estar feita seja aberta exceção, à semelhança do que se fez com o PAN na última legislatura. Como se viu, em cima da hora, quando PS, BE, PCP e PEV perceberam a asneira que fizeram e tentaram emendar a mão, depois de o presidente da Assembleia da República e o Chefe de Estado terem criticado duramente a posição de calar os pequenos partidos.
É completamente absurdo chamar um partido para discutir opções estruturantes da governação, mas querer silenciá-lo no Parlamento.
Em tempo, estamos a falar de escassos minutos que não fazem qualquer diferença matemática. Mas fazem toda a diferença entre respeitar os direitos de deputados democraticamente eleitos, e que representam milhares de eleitores, ou manter um silenciamento antidemocrático que mostra a dificuldade dos partidos em se adequarem à grande diversidade que saiu das últimas eleições.
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O disparate é particularmente grave no caso do partido do Governo. Recorde-se que logo na noite de 6 de outubro António Costa chamou o Livre - anunciando, aliás, a eleição até aí não confirmada de Joacine Katar Moreira - para as reuniões que pretendia manter com todos à Esquerda. É completamente absurdo chamar um partido para discutir opções estruturantes da governação, mas querer silenciá-lo no Parlamento.
Acresce que, exatamente por não nos termos habituado a pensar fora do sistema dominante, os deputados únicos já têm outras limitações. Desde a ausência da conferência de líderes (em que o PAN esteve sem direito de voto, como observador) ao facto de também estarem fora da Comissão Permanente, são muitas as omissões do regimento. Com consequências práticas, não apenas do ponto de vista da visibilidade mas também da capacidade de influenciar decisões relevantes, como o agendamento da votação de iniciativas legislativas.
A posição inicial de PS, PCP, BE e PEV mostra o inverso dos valores defendidos pela Esquerda.
Os partidos à Esquerda têm, afinal, medo de quê? No caso do Livre, de uma agenda com muitos pontos de contacto com a do BE e do PCP. Já o Iniciativa Liberal, com um posicionamento diferente, irá assumir-se claramente como partido de oposição. Mas é o Chega que causa verdadeiro incómodo, assumindo-se como uma espécie de bicho papão com o qual ninguém sabe como lidar.
Não será, contudo, com desrespeito pelas regras democráticas que se chega a algum lado. Pelo contrário. A posição inicial de PS, PCP, BE e PEV mostra o inverso dos valores defendidos pela Esquerda. Demonstra também que se perde tempo a discutir o que não interessa, alinhando numa agenda típica de redes sociais, de casos e posições irrefletidas, que só contribui para o florescimento dos populismos e para o desinteresse dos cidadãos relativamente aos políticos e partidos tradicionais. O que há a fazer é o inverso: recolocar a discussão nos temas das pessoas e do país. Já agora, elevando o nível do debate e respeitando todos os deputados eleitos, sem a pretensão de que há alguma espécie de supremacia de uns em relação a outros.
O Parlamento é o palco privilegiado da democracia e da tolerância. Não pode ser exemplo de medo, muito menos de arrogância.