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Eu tinha nove anos. Estávamos no recreio depois da aula das dez, a das onze não havia meio de começar, até que um de nós foi à secretaria e saiu de lá eufórico a gritar: "Eh pá, não há aula. Morreu a mãe do gajo!"
Foi a primeira exibição da maldade humana, directa, diante de mim, de que me lembro. Vivia infância feliz, o país estava em paz (dois anos sossegados de Ilha Terceira, onde o desembarque britânico de soldados e maquinaria fora espécie de festival de Dinky Toys em grande), de judeus conhecia o Dr. Benoliel, amigo lá de casa e de o Pai dizer que Portugal era um sítio tão extraordinário que até se encontravam jesuítas e judeus estúpidos. Não havia antissemitismo porque não havia judeus desde o século XVI (embora por essa altura nem cristãos-novos - judeus forçados a converterem-se ao catolicismo - fossem deixados em paz: na Páscoa de 1506, em dois dias, pelo menos mil foram executados em Lisboa). Meninos precoces, o mano João e eu seguíamos a guerra pela BBC mas esta não falava do Holocausto, nem, como é sabido, os grandes países aliados ajudaram muito. Estados Unidos e Grã Bretanha não deixaram atracar barcos com centenas de judeus candidatos a refúgio que lhes foi negado.
Com a guerra a chegar ao fim, apareceram imagens a preto e branco da libertação dos campos de concentração nazis nos "documentários", actualidades mostradas nos cinemas antes do filme que se vinha ver. No Palácio, ao Arco do Cego, perto de nossa casa, chegaram-me algumas dessas imagens, tinha eu dez anos. Não me lembro de qual dos campos era mas lembro-me das caras e dos corpos famélicos, das roupas, dos olhares, do horror, me terem feito tapar os olhos - nunca me acontecera antes nem aconteceu depois. Era maldade humana diferente: enorme, estruturada, política.
Durante anos, continuou a não haver anti-semitismo em Portugal. Farrapos subsistiam, misturados com outras tradições semi-analfabetas. Conheci pequeno proprietário alentejano, mau como as cobras, a quem chamavam o Jesuíta "por fazer multas judiarias" (por exemplo, ter mandado esfolar um gato vivo). E, para muita gente, a palavra sinagoga queria apenas dizer segredo obscuro de família. Entretanto foi criado o Estado de Israel, o anti-semitismo europeu renasceu, tendência que se acentua, desta vez sobretudo à esquerda, e a que Portugal não escapou. É instrutivo, por exemplo, contrastar indignações de comentadores políticos e académicos com acções de agentes do Estado de Israel (única democracia do Próximo Oriente) na faixa de Gaza ou nos territórios ocupados, com falta delas perante muito maiores violações dos direitos do homem cometidas pela China, pela Rússia, por muitos Estados Árabes e africanos, pelo sortido enfim de ditaduras hoje existentes no mundo. Só anti-semitismo europeu o justifica.
Comemora-se o 75° aniversário da libertação de Auschwitz, diante do que resta do campo. Receio que tal não chegue para travar a maré de intolerância brutal que sobe na Europa.