Não existe uma única relação de Portugal com o Brasil. Existem vários tipos de vínculos, com vários tipos de densidade, conduzidas por vários tipos de agentes, muitas vezes de forma divergente.
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Duas doenças podem ter sido observadas em Portugal nas últimas semanas. A Síndrome de Hiper Empatia explicaria porque é que os portugueses acompanharam a eleição no Brasil como se fossem eleitores. Caminharam cautelosos pelo Chiado como se sentissem o risco de serem atingidos por uma bala perdida da favela da Maré. A vitória de Jair Bolsonaro, dizem, deveria combater-se com ativismo. Por outro lado, os representantes do Estado português sucumbiram à Síndrome de Riley-Day, tornando-os insensíveis à dor e incapazes de produzir lágrimas. A falta de emoção, sinónimo para sentido de Estado, sentiu-se nos irrepreensíveis comunicados da Presidência da República e do Governo após a eleição.
Os dois tipos de reação espelham o óbvio. Não existe uma única relação de Portugal com o Brasil. Existem vários tipos de vínculos, com vários tipos de densidade, conduzidas por vários tipos de agentes, muitas vezes de forma divergente. É o mar com limos da Ericeira. Por isso, as reações à vitória de Bolsonaro deverão também ser díspares. Uns poderão ser prejudicados, outros não.
A diplomacia poderá ser diretamente afetada. Os temas da lusofonia e da CPLP deverão cair mais um degrau na escala de prioridades brasileiras. Passarão do rés-do-chão para a cave. Na campanha eleitoral nenhum dos candidatos, ou os seus aliados mais próximos, fizeram qualquer referência a este assunto nem nenhum deles tem relações próximas com Portugal. As novas prioridades parecem estar no fortalecimento das relações com os EUA, Israel e Coreia do Sul.
Nas últimas semanas exumei dezenas de antigas entrevistas e escritos das cinco pessoas mais próximas a Bolsonaro na área internacional (Emb. Ernesto Fraga Araújo, Luiz Philippe de Orléans e Bragança, Ana Amélia, Marcos Troyjo, e Emb. Luís Henrique Sobreira Lopes), sem conseguir detetar qualquer interesse pela lusofonia. Um deles, o príncipe Luiz Philippe, usou a Cruz da Ordem de Cristo nos materiais de propaganda da recente campanha a deputado federal. Apesar disso, e de ser incontinente no Twitter, onde fala sobre as relações do Brasil com vários países, nunca tuitou sobre Portugal. Pode ser sensatez. Mas pode ser desinteresse.
Isto são, na verdade, boas notícias. Portugal tem a vantagem de ser um país desconhecido para Bolsonaro e os seus aliados. É uma folha em branco. Num contexto onde já se começam a cavar as trincheiras, a neutralidade é uma oportunidade. Ao usufruir de uma liberdade sem precedentes, a diplomacia portuguesa terá que ser expedita e criativa para poder abastecer a relação bilateral com novas agendas e temas.
Isto não significa sermos cúmplice dos crimes alheios ou sucumbir ao utilitarismo, como aconteceu com Hugo Chávez na Venezuela ou José Eduardo dos Santos em Angola. O Presidente da República e o primeiro-ministro não devem mostrar um excesso de intimidade com Bolsonaro nem devem deixar de ser rigorosos na proteção global dos direitos humanos, mas devem criar as condições mínimas para que os diferentes representantes de Portugal possam caminhar no terreno minado brasileiro. Tanto no espaço quanto no tempo, o Brasil não é só o seu novo Presidente.
Mas também não é só Brasília. O nosso país pode e deve fortalecer relações com governos subnacionais brasileiros, alguns deles com um PIB superior ao português. Entre 2012 e 2014, França, Reino Unido, Canadá e EUA assinaram acordos para estabelecer relações formais e diretas com o Estado de São Paulo, por exemplo. Portugal deveria seguir esse caminho.
O dia 1 de janeiro de 2019, dia da tomada de posse de Bolsonaro, servirá para ensaiar o novo guião. Se Portugal for representado pelo Presidente da República ou pelo primeiro-ministro, como aconteceu na tomada de posse de Dilma Rousseff em 2011, sinalizará intimidade e poderá gerar atritos domésticos. Por outro lado, não enviar alguém seria um gesto irracional que erodiria os interesses do Estado.
Por isso, o país deveria ser representado pelo ministro dos Negócios Estrangeiros. Do lado brasileiro, a representação secundária não deverá causar qualquer desafeição, tal como não gerou quando Paulo Portas representou o país na tomada de posse de Dilma em 2015. Augusto Santos Silva poderia também aproveitar a ida ao Brasil, no início do ano, para visitar os novos governadores do Rio de Janeiro e de São Paulo.
A sociedade portuguesa terá também que ser coerente. Se apoiou apaixonadamente os 89 milhões de brasileiros que resistiram e não votaram em Bolsonaro, deverá mostrar abertura a quem decidir mudar-se para Portugal. Isso porque o novo contexto político deverá estimular um êxodo silencioso mas consistente de profissionais criativos, bons quadros técnicos e intelectuais brasileiros.
Ao longo das décadas, os portugueses habituaram-se à imigração brasileira das classes mais baixas, transferindo-lhes os calos das mãos e os apartamentos suburbanos. Nos últimos anos conheceram também os "novos ricos", aqueles que compram imóveis de alto padrão para viver em Portugal com a mesma insularidade com que viviam em Miami ou na Barra da Tijuca.
Mas não conhecem a classe média letrada brasileira. Certamente houve no passado intelectuais brasileiros que viveram em Portugal, como o jornalista Alberto Dines, o cineasta Glauber Rocha ou o escritor Mário Prata, mas talvez nunca tenhamos sido expostos a um estuário tão grande de brasileiros bem preparados, em idade ativa, com interesse em contribuir para a sociedade portuguesa.
Portugal é um país acolhedor para estrangeiros, mas são poucos aqueles que conseguem ingressar nos espaços de poder. Ao contrário do Reino Unido, da Alemanha ou da Suécia, não temos estrangeiros na política. Fareed Zakaria (nascido na Índia) e Christiane Amanpour (britânica e iraniana) são dois dos apresentadores de TV mais conhecidos nos EUA. Ambos têm até sotaque estrangeiro. Mas em Portugal não existe uma evidente diversidade nos meios de comunicação.
Na lista das 25 mulheres mais influentes em Portugal apenas duas têm origens em outros países (Isabel dos Santos e Francisca Van Dunem), enquanto a lista britânica tem 12. Ambos os países são historicamente recetivos à imigração, mas Portugal é mais fechado, apesar das fronteiras mais abertas. A chegada de brasileiros com boa formação académica e profissional poderá levar a pequenos e benéficos consertos na estruturação do poder no país.
A política poderá também ser afetada. Portugal, como qualquer outro país, tem uma franja da sociedade conservadora que convive bem com tradicionalismo e autoritarismo. Desde o 25 de Abril que esses grupos usam o CDS e o PSD como orfanatos temporários enquanto aguardam por uma adoção. Porém, o convívio recente da atual direção do PSD com o centro político tem começado a deixar desabrigadas as opiniões mais à direita o que, somada à vitória de Bolsonaro, poderá inspirar dissidências e levar à criação de partidos radicais. Poderíamos acreditar que não existem em Portugal líderes com a elevação e carisma necessários para comandar um movimento populista de direita. Mas a História diz-nos que líderes autoritários são quase sempre mal-acabados e toscos. E desses, Portugal tem uma mão cheia.
Se somarmos a isso a existência de uma pequena indústria nacional de fake news, como revelado pelo Diário de Notícias, ou a presença de jornais tabloides prontos para dar destaque ao populismo, já teríamos o motivo e os meios. Faltariam a oportunidade para o crime ser perfeito. E essa chegará quando Portugal atravessar uma crise profunda (de emprego, problemas com imigração, corrupção etc.) que possa ser imputada à esquerda ou quando se agudizar o afastamento, que está a crescer, entre a população e as elites. Finalmente, alguns empresários portugueses também esfregam as mãos, de forma pragmática, com a vitória deletéria de Bolsonaro. E eles têm em parte razão. Ninguém sensato consegue inferir qual será a intensidade das privatizações que o novo presidente prometeu fazer. Mas várias das 148 empresas estatais sob gestão do Governo federal deverão ser vendidas, principalmente as que operam nas áreas de energia e infraestrutura. Sozinhas, empresas portuguesas não têm estrutura óssea para compras tão pesadas. Mas são o parceiro ideal para empresas estrangeiras de estatura planetária, porque podem aportar conhecimento local, experiência cultural, e profissionais qualificados e adaptáveis - ativos que podem faltar a grandes empresas da China e dos EUA.
Os impactos de Bolsonaro variam, assim, de acordo com o tipo de interesses e de agentes. A única característica em comum a todos eles é que em breve começarão a padecer de uma outra doença, o Transtorno Cognitivo Bolsariano, uma incapacidade de entender os contraditórios e sempre mutáveis pontos de vista do novo Presidente.
Infelizmente, para essa doença grave, ainda não há cura.
* Rodrigo Tavares é fundador e presidente do Granito Group. A sua trajetória académica inclui as universidades de Harvard, Columbia, Gotemburgo e California-Berkeley. Foi nomeado Young Global Leader pelo Fórum Económico Mundial.