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Talvez o que nos falte, a todos nós, é alguma perspectiva. O credo nos lábios, o coração ao pé da boca, o pânico de quem não sai da sua aldeia fortificada de ódio, haverão de nos destruir. Mas, se calhar isso não importa nada. O melhor a fazer é meter as pipocas no micro-ondas e comê-las quentinhas enquanto a tenda arde e o circo acaba. Vemos o mundo simplesmente conforme nos interessa vê-lo no momento. A nossa bondade ou maldade depende se a digestão foi boa, se o sexting foi bom ou se ganhámos dez euros numa raspadinha. Deitamos os cartazes da propaganda climática no lixo, porque, ao contrário dos macacos, não aprendemos ainda a reciclar, e ala para a Padaria Portuguesa comer o croissant vegan e o leite de soja, enquanto metemos as selfies no Instagram, digitando no lítio que ainda agora demonizámos ao pé da estátua do Marquês.
Se houve alguma coisa que entendi - ou aprendi - em partilhar espaço e oxigénio com 29 pessoas num autocarro durante quase dois meses é que o microcosmo imita a grande conjuntura, que a nossa placa de Petri faz bem as vezes do tecido social cheio de micróbios em que vivemos alegre e contentes, como porcos na lama. Desde que dê para dizer mal dos outros (mesmo que sejamos, nós próprios um inconfessável e retumbante falhanço) estamos bem. Usamos o pires da ciência para pousar a chávena da nossa bica, sendo fácil de concluir e assumir que em cada 28 que se queixam haverá um parvo que tenta fazer alguma coisa sobre o assunto. Mandem-me aprender canto lírico se assim o entenderem, que a verdade , essa cena que não interessa nada, ficará exactamente na mesma. Muitas vezes, sinto-me como o terreno baldio onde as pessoas que me orbitam, depositam os seus monos, o seu lixo. Não cobro nada por isso e ainda entrego de volta o eletrodoméstico reciclado para cada um ir alegre e contente à sua vida. Eu fico no cemitério, coveiro da frustração alheia dos verdadeiros pretensiosos, macaquitos que tocam concertina nos Açores ou imitam o Freddy Mercury mas em gordo, como se este tivesse engolido uma embalagem XL de cortisona. Eles vivem satisfeitos com o cheiro do peidinho que deram por baixo dos cobertores da pensão onde dormem depois das festas do feijão frade onde tocaram, enquanto eu morro mais um bocadinho a cada dia que passa.
Quando comecei a ser músico para mim era igual o músico que tocava na Festa da Chamusca ou no Carnegie Hall. Respeitava ambos. Levou-me uns feios quarenta anos para perceber o quanto estava errado. O vocalista com as calças brancas apertadas nos tomates odeia o fadista do Carnegie Hall. Não lhe percebe o sucesso, atira às culpas à sorte e faz aquela célebre anedota do Porsche transformar-se num adágio que celebra impecavelmente a última palavra dos Lusíadas e afinal o grande ADN que corre no sangue dos Portugueses: inveja. O do Carnegie Hall quando passa pela Chamusca faz questão de deitar os papéis para fora da janela do carro, ir comer ao restaurante onde o outro serve e se possível cagar-lhe a sanita toda e ir-se embora sem puxar o autoclismo, ou deixar gorjeta. Estão bem um para o outro e só se estraga uma família neste merdoso arranjinho.
Quando comecei a ler ou a escrever confessei logo a minha pretensão e mania. Nunca a escondi, mas mesmo assim sou um modesto anão ao pé de "editores" de "revistas" online, que não acreditam no poder regenerador e transformador dos livros e das palavras. A estupidez é mais forte que a pena, porque pegar na espada e furar umas barrigas cheias de asco é para estúpidos como eu. Desafiar nazis, expor a sua vileza é afinal apenas um conselho de amigos, um escrever por escrever, uma coisa levezinha.
Grande parte da população não sabe mais do que emitir o constante mugido do queixume. Vivem no aproveitamento parasita do desgaste de quem luta. Mesmo sabendo disso perfeitamente não poupam o desgraçado do Atlas, carregando-lhe as costas de peso e olhando-o de lado como se fazer fosse mais fácil carregar toda esta porcaria do que dormir o dia todo e aparecer para comer, defecar e meter memes na net.
No camarim de Helsínquia, quase sem voz porque o nosso condutor do autocarro fuma 5 maços de cigarros por dia onde bem lhe apetece (e só parou agora porque eu disse que ia para casa e sem palhaço não há circo), uma "amiga" que não conheço de lado algum diz-me que está com fome, para eu lhe passar as batatas fritas. Eu dou-lhe o pacote com uma mão enquanto ela fala comigo sem se interromper mesmo que não a oiça porque estou a tentar enviar uma SMS à minha mulher. Entrou de borla e viu-me percorrer o inferno em palco para conseguir, com sucesso, completar o enésimo concerto desta digressão. Mas o que é que isso lhe interessa quando a fome aperta depois das ganzas, se eu estou ao pé do que ela quer? Absolutamente nada.
Já não tenho quase amigos, tenho pessoas que escrevem no grande livro de reclamações em que me tornei. Já não tenho quase apreciadores, foram substituídos por consumidores. Já quase ninguém me admira, são apenas meus clientes. Quem ri por último são os gordos que cantam nas sátiras bufas às bandas rock nos palcos terciários das Queimas das Fitas, os que votam Ventura para dar cabo desta merda toda; ou os da concertina nos Açores que não arranjam tacho no continente, todos que não admitem que eu goste de pretos, que entenda os ciganos e que sabem que, infelizmente para eles, considero a morte dos 31 vietnamitas fechados num contentor em Inglaterra uma tragédia tão grande quanto as facadas em Londres ou em Haia. O valor da vida não se devia medir pela cor da pele, os argumentos não deviam ser deixem-nos entrar nas vossas casas deixem, como se em Portugal cada um que fala sobre isso tivesse um refugiado em casa e ignorasse que em qualquer grupo hão de existir sempre boas e más sementes. Uma ovelha negra não deixa de ser uma ovelha. Mas é melhor nem falar disso, desse imperialismo de cor branca, que tirou aos refugiados a água das suas fontes, os telhados das suas casas, o sorriso dos seus lábios. Ainda me vão "culpar" também pelas infames facadas.
E enquanto passo as batatas fritas com a mão livre sinto que já me levam também o braço. É deixá-lo ir. Eu sigo já, atrás dos meus patrões. Já não há quase ninguém para me puxar de volta. E as pessoas com que eu contava para fazer isso nem sequer se dão ao trabalho de ler os meus artigos.