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A Quinta da Torre Bela, na Azambuja, encontrou um caminho no mínimo original para contribuir para os objetivos do país rumo à descarbonização. Uma vez que precisa de libertar terrenos para a instalação de uma central fotovoltaica, a caça contribui para remover os animais de grande porte ali existentes. A ligação entre as duas coisas está assumida, com toda a clareza, no próprio estudo de impacto ambiental, em consulta pública até 20 de janeiro.
É inevitável concluir que o pretexto de libertação do terreno acabou por servir de desculpa para uma matança completamente inaceitável.
O projeto para aquela que é uma das maiores quintas muradas da Europa deverá ocupar uma área de 755 hectares. Encomendado pelas duas empresas promotoras (Aura Power Rio Maior SA e CSRTB Unipessoal Lda, grupo Neoen), o estudo de impacto ambiental indica que os animais têm vindo a ser caçados. "A proprietária desta quinta, na expectativa da implantação deste Projeto das Centrais Fotovoltaicas, tem desenvolvido ações para diminuir o efetivo dos animais. Alguns têm sido caçados", outros transferidos para uma área murada adjacente. Tudo somado, "prevê-se que previamente ao início das obras já estejam retirados todos os animais de grande porte", lê-se no documento.
Mesmo admitindo que não tenha havido descontrolo em anteriores ações de caça, é inevitável concluir que o pretexto de libertação do terreno acabou por servir de desculpa para uma matança completamente inaceitável. Acompanhada de imagens e mensagens do grupo de caçadores espanhóis a vangloriarem-se do "super recorde" nas redes sociais.
Não basta o repúdio, é preciso que haja celeridade no apuramento dos factos e no inquérito aberto na sequência das queixas apresentadas pelo Ministério do Ambiente e pelo PSD da Azambuja.
Foi generalizada a condenação inequívoca do sucedido, com reações de partidos, Governo e organizações nacionais de caça, que repudiaram o sucedido e pedem atuação rápida para perceber se houve "extermínio" de animais. Mas não basta o repúdio, é preciso que haja celeridade no apuramento dos factos e no inquérito aberto na sequência das queixas apresentadas pelo Ministério do Ambiente e pelo PSD da Azambuja. Poderão ser criminalizados os organizadores, os detentores da licença daquela área turística e os próprios caçadores.
O que está em causa na matança da Quinta da Torre Bela vai muito além dos limites da lei.
A caça é uma atividade regulada, sujeita a legislação específica, e é inclusivamente defendida por especialistas em conservação da natureza como mecanismo de repovoamento de ecossistemas. Desde que, naturalmente, exista uma gestão sustentada dos recursos cinegéticos. Face ao que se viu na montaria do fim de semana, importa perceber se temos uma lei adequada e, mais importante ainda, instrumentos suficientes para fiscalização e prevenção de abusos.
O que está em causa na matança da Quinta da Torre Bela vai muito além dos limites da lei, mas não impede que também os próprios fundamentos da caça sejam questionados. Cada vez que vemos animais mortos aos pés de um caçador justifica-se a pergunta: faz sentido continuarmos a considerá-la um desporto e a admitir que é legítimo matar para exibir um troféu?
A história está cheia de exemplos de práticas admitidas durante séculos que deixaram de o ser. E a caça, como a tourada, merecem ser permanentemente questionadas.
Claro que os defensores desta atividade como herança cultural e civilizacional do percurso que nos fez homo sapiens alegam que contestá-la é esquecer essa história. Mas a humanidade é feita de muitos marcos, alguns deles disruptivos. Evoluímos e questionamos permanentemente os nossos próprios princípios. A história está cheia de exemplos de práticas admitidas durante séculos que deixaram de o ser. E a caça, como a tourada, merecem ser permanentemente questionadas. Mesmo sendo evidente que, por agora, nos dividem mas continuam a merecer o apoio de uma grande franja da população.
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