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Inabilidade e arrogância são, cada uma por si, más conselheiras. Quando se juntam numa mesma decisão ou declaração, o resultado nunca pode ser bom. Foi mais ou menos isto que aconteceu ao Ministro dos Negócios Estrangeiros, numa infeliz, estranha e extemporânea declaração, em Brasília, quando anunciou que Lula da Silva, o presidente do país-irmão, discursaria no parlamento a 25 de Abril, dia da sessão solene do aniversário da revolução dos cravos.
Inábil, antes de mais, porque o ministro da diplomacia deveria conhecer, melhor do que ninguém, os rigores do protocolo do Estado. Enquanto representante do governo para os negócios estrangeiros, Gomes Cravinho sabe, ou devia saber que a política externa é articulada com Belém e, quando é caso disso, com o presidente do parlamento. O ministro, numa inabilidade política básica, esqueceu-se de que quem manda no parlamento não é o governo, de que quem decide as cerimónias protocolares - como a do 25 de Abril - são os deputados, consultada a conferência de líderes e, depois de haver consenso, decidido pelo PAR. Na voragem do anúncio, o MNE ultrapassou a Assembleia da República, de onde emana o Primeiro-Ministro e, por arrasto, ele próprio. Esqueceu-se da regra elementar da democracia representativa, que é a separação de poderes. E, no limite, pode ter, o próprio ministro da diplomacia, criado um embaraço diplomático difícil de resolver. Escusado.
A segunda questão tem a ver com a arrogância. Certamente, Gomes Cravinho «não fez de propósito», não quis ultrapassar nenhum outro órgão de soberania, não viu mal nenhum num anúncio de algo que pode parecer pacífico e consensual. Nem sequer deve ter pensado nisso. Porque a maioria absoluta parlamentar com a consequente presidência do parlamento entregue ao PS, o desprezo pela oposição, a confusão entre poderes, a ligação direta entre estado, partido e órgãos de soberania é uma das razões pelas quais uma maioria absoluta se pode tornar perigosa, arrogante, desmazelada e omnipresente. Esta, a de 2022, do PS, tal como as anteriores três que os portugueses confiaram a partidos políticos.
A «ditadura da maioria», como Soares chamou às governações absolutas de Cavaco acaba por, naturalmente, sem dar por isso, levar a excessos de zelo, de autoridade, de perceção, de domínio absoluto.
Por que raio - terá pensado o MNE - preciso de falar primeiro com o PAR se ele é do meu partido, se o PS tem maioria absoluta e se, em Portugal, o facto de Lula da Silva discursar no parlamento será, certamente, consensual? E, se não for, citando o chefe do governo: «habituem-se»?
Acontece que Santos Silva, socialista, tem encarnado muito bem o papel de presidente de todos os deputados e, por isso, respeitando a maioria, tem de cuidar da minoria, na exata medida em que cada deputado no parlamento representa uma fatia de eleitores. E, por vezes, as maiorias absolutas tendem a esquecer que, para lá dos deputados do partido que governa, há outros que representam um país que não escolheu aquele governo nem aquela maioria.
Ao despropósito do anúncio antes de tempo, o MNE conseguiu, numa só declaração, ser inábil e arrogante. Ainda que, acreditemos, não tivesse nenhuma das duas intenções. A sessão solene de comemoração do 25 de Abril, daqui a dois meses, estará, em qualquer dos casos, ferida de polémica. Se Lula vier e discursar nessa sessão, o anúncio prévio do MNE terá sido validado, mesmo tendo sido feito com desrespeito institucional grave. Se Lula vier e não falar na sessão evocativa do dia da Liberdade, estará criado um embaraço, mesmo que seja encontrada uma outra fórmula protocolar. A nova Ministra da Habitação confessou, há dias, que o pacote de medidas para a habitação surgiu «por impulso». Gomes Cravinho também falou por impulso. Que o diga Pedro Nuno Santos. Governar, decidir e falar por impulso, normalmente, não dá bom resultado. E Lula? Não merecia estar nesta caldeirada.
