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«Deixou de haver espaço para a metáfora. As pessoas não conseguem ver uma coisa como uma outra coisa. É um estado mental literal», Bret Easton Ellis
«A excessiva atenção que se presta ao perigo faz com que muitas vezes se caia nele», La Fontaine
«O desastre pode resultar de uma simples oportunidade perdida», Napoleão Bonaparte
Vamos terminar 2019 com aquela sensação estranha de que o que podia estar a correr mal está a correr.
Na Europa, vai mesmo haver um adeus inglês (que nos últimos três anos esteve longe de ser inevitável). E mesmo que haja tantos cidadãos britânicos e europeus a acreditarem que "o Brexit pode nem ser assim tão mau para o Reino Unido e para a UE", os problemas a sério só agora vão começar. O resultado das eleições de 12 de dezembro não podiam ser mais ilusórios: o triunfo esmagador de Boris Johnson não revela tamanha maioria de "brexiteers" - apenas denota o ponto de cansaço e desespero a que o eleitorado chegou.
No Brasil, 2019 revelou um presidente medíocre, ignorante e mal preparado, que responde a perguntas incómodas com insultos primários a minorias e envergonhou uma nação de 210 milhões de pessoas com um discurso inacreditavelmente pobre em plena Assembleia Geral da ONU.
Vivemos no tempo em que as piores soluções se impõem porque, simplesmente, falam mais alto e mentem melhor. O inaceitável passou a ser inevitável. Qual é a parte de "abuso de poder" que ainda não perceberam?
Do outro lado do Atlântico, a bizarria da eleição presidencial de Donald Trump em 2016 gerou mais um ano de perplexidades. Quando, na Casa Branca, está alguém que promove uma estratégia perversa de vitimizar os culpados e culpabilizar os inocentes, percebemos que a tendência se repete, numa espécie de sinal de declínio de valores para caracterizar um final de década. A inversão do ónus só não é ainda maior porque o sistema americano tem-se mostrado forte e pujante nas suas instituições, mesmo em tempos de preferência populista de quem tem o poder do voto.
Donald Trump tem devaneios de ditador e lidera uma república constitucional com quase dois séculos e meio. A contradição nos termos tem, no "impeachment", o seu momento definidor. O mais irónico neste processo é que os eleitores de Trump, tão nacionalistas e patrióticos, ainda não se terão apercebido de que a base da acusação é, precisamente, a de que o Presidente dos EUA terá posto os seus interesses pessoais egoístas acima do interesse nacional.
É caso para perguntar: qual é a parte de "abuso de poder" que ainda não perceberam? Ou, como Adam Schiff, democrata que dirigiu a primeira fase das investigações no Congresso, «se isto não é motivo para impeachment, o que é que será»?
A tese de que "não se devia ter feito nada porque, no final, Trump pode sair beneficiado eleitoralmente" até pode ser correta no plano da análise política - mas é perversa na essência do que deve ser uma democracia madura. Uma democracia forte, como os EUA ainda são, apesar de terem como Presidente um "bully" egocêntrico que pisa os outros, é muito mais do que resultados eleitorais. E oferece aos seus cidadãos garantias de que eles nem se apercebem que têm. Para serem eleitores - e, com isso, poderem ter o direito de, em novembro de 2020, voltarem a eleger Trump - têm que continuar a ter instituições que funcionam.
Depois do "impeachment", ficámos a saber que Donald Trump, mesmo sendo o favorito à reeleição daqui a dez meses e meio, se fizer segundo mandato será um presidente que já violou dois artigos que configuram destituição.
Calma: ainda não é para fechar a democracia. Ainda não está tudo perdido.
A normalização dos comportamentos populistas tem um reverso que o tempo ajuda a destapar. E a força das instituições contribuirá para que se possa salvar alguma coisa (o essencial já foi há algum tempo).
Onde é que está o muro que Trump prometeu na campanha?
Onde anda a caravana perigosíssima cheia de imigrantes invasores da América Central que ia entrar pelas fronteiras dos EUA?
Onde estão as obras públicas fantásticas prometidas por Trump na campanha no tal plano de infraestruturas que propalava?
E, perante tudo isso, onde é que está a "accountability" dos eleitores Trump?
A sério que não lhes importa minimamente terem sido enganados - eles que ficaram tão furiosos pelas promessas não cumpridas dos "políticos" que quiseram arrasar com a escolha presidencial de 2016?
Atrás dos tempos vêm tempos.
*Autor de "Isto Não é Bem um Presidente dos EUA - Diário dos Anos da Perturbação Americana"