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Depois de um congresso em que Xi Jiping consolidou e expressou o seu poder de forma absoluta (com aparentes requintes de humilhação a supostos opositores), o líder chinês vê-se agora confrontado com o maior desafio ao seu poder até à data e talvez a maior crise do regime desde Tiananmen.
Os protestos na China tem a sua origem no falhanço da política Covid-Zero. É impossível ter uma economia aberta e uma sociedade a funcionar prevenindo de forma total os contágios do vírus. As democracias sempre souberam isso. Os confinamentos e distanciamento social foram sempre uma solução temporária até o processo de vacinação permitir proteger os mais frágeis. Ao contrário do que alguns inicialmente disseram, as democracias, apesar dos seus inúmeros problemas e falhanços, funcionaram melhor que os regimes autoritários na gestão da pandemia. Os regimes democráticos foram os menos imperfeitos.
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É difícil perceber como o regime chinês se deixou aprisionar pela obsessão do Covid-Zero. Há duas teses. A primeira argumenta que a China não se pode permitir abrir a sociedade e economia como os países ocidentais o fizeram porque, mais até que a taxa de vacinação, é a eficácia das vacinas chinesas que é muito reduzida. A isto acresce que os serviços hospitalares são muito piores e, em particular, o número de camas de cuidados intensivos, é muito mais baixo que nos países ocidentais. As medidas draconianas de isolamento e confinamento seriam simples consequência disto. Um relaxamento das mesmas levariam ao regresso de inúmeras mortes e caos nos hospitais. A segunda tese, entende que o governo chinês usou a pandemia como pretexto para instalar um regime de controlo social generalizado e ainda mais opressivo.
Seja qual for a razão, esta estratégia é insustentável a tão longo prazo e o povo chinês dá sinais de revolta. De tal forma que o governo, apesar do seu enorme poder, deu sinais de abertura e mudança na política de gestão da pandemia. Resta saber se isso será suficiente ou se a revolta perante a pandemia é a faísca de uma revolta mais profunda perante o regime instituído por Xi Jiping.
Desde as reformas introduzidas por Deng Xiao Ping que a legitimidade social do regime chinês assentou uma espécie de contrato social implícito com os seus cidadãos. Em primeiro lugar, apesar da ausência de liberdade política, o regime prometia (e cumpriu durante muito tempo) assegurar crescimento económico e diminuição da pobreza (embora, ao contrário do que foi dito recentemente pelo novo Secretário Geral do PC, a pobreza continue a ser maior na China que nos países ocidentais, a China diminuiu de forma notável a pobreza nas últimas décadas). Em segundo lugar, o regime assegurava alguma liberdade cultural e cívica, mesmo sem liberdade política. Era permitido algum escrutínio do poder e lembro-me de visitar há 10 anos bairros culturais em Shangai e Pequim onde a crítica política era visível. O mesmo refletia-se na manutenção das liberdades políticas em Hong-Kong e Macau. A tudo isto acrescia que, que não sendo uma democracia, tinham sido criados mecanismos internos ao PC chinês de escrutínio político e alternância no poder.
Acontece que os desenvolvimentos recentes colocam em causa este contrato social:
O crescimento económico tem vindo a desacelerar de forma significativa.
A gestão da pandemia diminuiu a liberdade económica, cultural e cívica e acentuou o caráter repressivo do regime.
E Xi Jiping mudou de forma substancial o regime agravando o seu autoritarismo e personalizando-o: concentrou o poder, aumentou a opressão e criou as condições para a sua eternização no poder ao eliminar da constituição o limite anterior aos mandatos presidenciais
A dúvida é se a contestação atual está apenas ligada às políticas do Covid Zero ou é já expressão de uma insatisfação maior com a evolução do regime. Seja como for, esta contestação desestabiliza um gigante mundial e, em consequência, desestabiliza o mundo. Mas ainda que possamos temer os efeitos desta instabilidade não devemos hesitar quanto ao lado certo deste combate político: aquele dos que lutam pela liberdade.