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Nos últimos anos, chegaram a este retângulo na ponta ocidental da Europa a que chamamos Portugal, várias centenas de milhares de imigrantes. É um bom sinal. Significa que, por aqui, há pelo menos uma promessa de paz, de liberdade e democracia, de oportunidades de trabalho. Resumindo, um lugar em que se pode ter a expectativa de conseguir uma vida decente. Pelo menos, quando se compara com aquilo que se deixou para trás.
Como todas as moedas, também a das migrações tem duas faces. Todos os anos saem, deste mesmo retângulo, umas largas dezenas de milhares de cidadãos aqui nascidos. Haverá alguns que partem pela aventura, pelo desafio. Mas a grande maioria sai pela mesma razão dos que chegam: vão à procura de uma vida melhor.
Voltemos aos imigrantes, que é essa a razão da crónica. Eles chegaram em grande número e com isso foi-se instalando um discurso ameaçador, primeiro nos extremos, e, entretanto, normalizado. Ter um discurso agressivo relativamente aos imigrantes passou a gerar dividendos políticos. E assim os imigrantes se foram transformando nos bodes expiatórios para os problemas acumulados do país e para as frustrações de cada um.
Se há insegurança, a explicação está na imigração. Se não há trabalho, é porque os imigrantes ficaram com ele. Se o Estado paga muito dinheiro em subsídios sociais, só pode ser porque os imigrantes abusam da nossa generosidade. Se o preço das casas aumenta, é por causa da pressão provocada pelos imigrantes. Não interessa que nada disto seja verdadeiro e que seja contestado pelos factos. A realidade já não conta, o que conta são as perceções que se criaram nas redes sociais e que colonizaram, entretanto, o discurso político.
Esta epidemia só podia acabar mal, como se confirma por algumas das propostas discutidas no âmbito da nova lei da nacionalidade. Não porque não seja necessário que haja regras e que elas sejam claras e exigentes. Da mesma forma que é absurdo vender vistos gold, que garantem direitos de cidadania a imigrantes ricos, seria absurdo atribuir um passaporte português a troco de nada. No entanto, e uma vez que sejam cumpridas as regras definidas por lei e atribuída essa distinção, um cidadão português não pode deixar de o ser por decreto.
Não me interpretem mal. Eu também não aprecio terroristas, assassinos, violadores ou traficantes de droga. Mas, tanto dá que sejam imigrantes, como portugueses de gema. Para os castigar temos as polícias, os tribunais e as cadeias, não o direito de cidadania. Ser cidadão de um país não pode ser um prémio por bom comportamento. Tem de ser um direito. Devidamente regulado, menos ou mais exigente, mas um direito. Uma vez cidadão, sempre cidadão, incluindo na cadeia.
Não pode haver cidadãos de primeira e cidadãos de segunda. Essa hipotética distinção, a única coisa que faz lembrar é o sistema de apartheid que vigorou, durante muitas décadas, na África do Sul, com cidadãos de primeira e de segunda devidamente catalogados. Por aqui ainda ninguém se lembrou de incluir a etnia ou a cor da pele na equação. Mas, quando alguém abre a porta, ela pode sempre ser escancarada pela personagem seguinte.