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«Tu já foste a Jerusalém, Alpedrinha?» «Não mas sei: pior que Braga».
Lembrei-me desta troca de palavras imortal entre o Raposão, herói da Relíquia de Eça de Queiroz, que ia em peregrinação à Terra Santa por conta de tia rica e beata, e o criado português que ele encontra num hotel do Egipto, ao ler nos últimos dias nos jornais muito sobre a situação da mulher em Portugal, às vezes sob o titulo "maus tratos domésticos", outras vezes, mais vivamente, sob "mulher morta à pancada pelo marido".
E pensei no Raposão e no Alpedrinha porque, se Jerusalém era pior que Braga, há hoje no mundo lugares ainda piores para a saúde, a felicidade, a própria vida das mulheres do que Portugal. Cada um de nós tem as suas memórias, leu os seus livros, folheou os seus jornais, fez as suas viagens, guarda sem querer os casos que maior impressão lhe causaram, carrega os seus demónios. Por mim, lembro-me sempre de episódio paquistanês aprendido há anos na imprensa, que, mesmo pelos padrões abjectos que enquadram o que passa por normalidade - quer no sentido de ser frequente quer no sentido de ser moralmente apropriado - nessa parte do mundo, sobretudo nos espaços rurais mais pobres dela (os ricos urbanos são como nós: se dois casais vão num carro, nas classes baixas os homens vão à frente e as mulheres atrás; nas classes médias vai um casal à frente e outro atrás; nas classes altas também mas com os casais trocados) deixa imagem indelével de crueldade e de ignorância.
Em província remota e miserável, camponês furioso por, em quatro anos seguidos, a mulher lhe ter dado uma filha quando era um filho que ele queria, desfigurou-a deitando-lhe à cara ácido sulfúrico. Notícia da barbaridade chegou aos principais noticiários do mundo mas na parvónia onde ocorreu o homem não foi preso nem qualquer parente da mulher lhe pediu contas ou procurou puni-lo. A primeira marca evidente deste horror é a crueldade. Crueldade não maior da do Dr Joseph Goebbels ao matar-se e à mulher, depois de terem assassinado os seus seis filhos pequenos, no fim do III Reich: o mal humano, omnipresente, não olha a raças, classes, culturas. A segunda é a ignorância. Em muitas partes do
mundo - até do Paquistão - sabe-se hoje que o sexo de uma criança é ditado pelo espermatozoide e não pelo óvulo. Mais horror ainda.
Em Portugal há muito a fazer. As estatísticas são más; o que não é declarado pior ainda. Em geral, o homem português está convencido da inferioridade maldosa da mulher. Na Escola de Belas Artes tinhamos de copiar a carvão um busto de Vitelius; quiz saber quem fora o personagem, li escritos dele num dos quais Vitelius recomendava que um homem se devia barbear todas as manhãs salvo se fosse visitar uma mulher.
Nesse caso - aí o alentejano ficou certo de que não se devia barbear de todo para que ela sentisse na pele a sua virilidade mas não - devia barbear-se duas vezes.
José Cutileiro publica originalmente este "Bloco de Notas" no blogue Retrovisor
O autor não escreve segundo a grafia alterada pelo Acordo Ortográfico de 1990