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Tendo em conta que os últimos dias têm sido marcados pela invasão da Rússia à Ucrânia, Daniel Oliveira garante que não costuma ser sensível "à teatralidade estudada dos políticos, muito menos dos déspotas". Contudo, "ao ver a expressão de ódio com que Vladimir Putin chamava de 'drogado' e 'nazi' a um Presidente que, por acaso, é o único chefe de Estado judeu na Europa e que lidera um país que está a ser ocupado, senti", confessa o jornalista, "o sopro quente do terror no pescoço".
No seu espaço habitual de Opinião na TSF, Daniel Oliveira relembra que é habitual dizer-se que "o poder corrompe e o poder absoluto corrompe absolutamente". "O poder absoluto por duas décadas com a promessa de mais 14 anos no maior país do mundo e com a sensação da inimputabilidade dada pelas armas nucleares corrompe até à loucura política", considera.
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"A loucura política de Putin é a dos homens predestinados, que sonham ficar na história a qualquer preço. A ganância da posterioridade pode ser bem mais perigosa do que a ganância do poder ou do dinheiro. Ela não teme qualquer consequência. Nem a morte. Sendo uma potência nuclear, só quem partilhe um pouco da loucura de Putin defende que outra potência com armamento semelhante pode entrar em confronto direto com a Rússia", afirma o cronista.
A loucura política de Putin é a dos homens predestinados, que sonham ficar na história a qualquer preço
Daniel Oliveira defende que "não é por ser uma aliança estritamente defensiva que a NATO não atua". "Se fosse, não o teria feito na Jugoslávia, na Líbia ou no Afeganistão. Nem sequer é porque o exército russo seja invencível. É apenas e só porque a Rússia é uma potência nuclear e um passo em falso pode levar à destruição da Humanidade. Foi por isso que, noutras circunstâncias, injustiças tremendas foram toleradas sem consequências. E ainda bem, porque nem as justiças teriam sido corrigidas, nem nós estaríamos aqui."
Aos que fazem permanentes paralelos com a Segunda Guerra Mundial, o jornalista lembra que em 1939 "não havia uma arma pronta a usar, capaz de por fim à Humanidade". "Resta armar os ucranianos para que resistam, e impor sanções que provoquem danos à elite política e económica da Rússia, esperando que ajudem a corroer o regime por dentro e dificultem o financiamento da guerra, mas sabendo que o sofrimento do povo não lhe dará a possibilidade de fazer cair um regime repressivo e brutal", argumenta.
O comentador refere que o caminho das sanções "é, como sempre foi, um equilíbrio difícil". "Não se deve ignorar que estas sanções terão um efeito boomerang, que agravando uma crise económica que já se previa, pode ajudar os partidos que Vladimir Putin andou a financiar a chegarem ao poder em países da União Europeia, o que só nos enfraqueceria, ainda mais com a chegada possível de sete milhões de refugiados."
A Rússia é uma potência nuclear e um passo em falso pode levar à destruição da Humanidade
"É fundamental que a União Europeia prepare almofadas para a crise, como não conseguiu fazer no passado, ou tudo pode descambar quando chegar a fatura desta guerra", explica.
Segundo Daniel Oliveira, esta "será a primeira guerra televisionada ao minuto". Na verdade, "um pouco mais do que isso". "Esta será a primeira grande guerra que nos será contada ao minuto pelo lado do ocupado e não do ocupante, o que nos poderia fazer refletir sobre o papel do Ocidente nas últimas décadas", assinala. A isto, alerta o jornalista, junta-se o facto de "as vítimas serem brancas e cristãs". "Infelizmente, são fatores de identificação que favorecem a empatia dos europeus."
Com o acesso às redes sociais, sites, televisões e rádios "em direto permanentemente", "não podemos ignorar o impacto emocional que esta guerra provocará". "Provavelmente, sem paralelo na nossa História. Ela nunca será distante. Isto tem um lado bom e um lado perverso", indica o comentador.
É fundamental que a União Europeia prepare almofadas para a crise, como não conseguiu fazer no passado, ou tudo pode descambar quando chegar a fatura desta guerra
"O lado bom é óbvio: não sendo esquecida, não poderemos abandonar as suas vítimas. Veremos se, quando vier a fatura económica e social a pagar pelos europeus, se mantém o consenso da solidariedade atual. Apesar de tudo, há uma diferença com o passado. A Rússia é, agora, percecionada como um risco direto e tangível para todos os europeus. O regresso à política dos blocos militares está em cima da mesa e, talvez fosse isso que Putin desejava. O reforço da NATO tem nos russos um efeito semelhante à ameaça russa para a Europa. Putin não conta na economia e conta muito pouco na política. Conta como potência nuclear e conseguiu que isso voltasse a ser relevante", sublinha.
"O efeito perverso é que as coisas se tornarão muito mais emocionais do que o habitual. Os líderes políticos, quando são muito pressionados por opiniões públicas, justamente comovidas e temerosas, tendem a tomar decisões pouco refletidas. Ou se esse poder político é irresponsável aproveita a emoção para o fazer. Quem não se lembra das políticas securitárias ou guerras ilegais depois do 11 de Setembro", relembra.
Inteligência e coragem são condições para vencer a ameaça imperialista de Putin
No entanto, "há uma grande diferença". Daniel Oliveira diz que "este conflito é com uma potência nuclear".
"Além de coragem e solidariedade, vai ser precisa muita inteligência e muito sangue frio. Um confronto na Europa, com uma potência nuclear é um perigo que o mundo não conhece. São precisas lideranças firmes, corajosas, mas sensatas. Inteligência não é medo, coragem não é irresponsabilidade. Inteligência e coragem são condições para vencer a ameaça imperialista de Putin", frisa.
Na perspetiva do jornalista, "os incendiários, que sempre aparecem nestas ocasiões, devem sair da sala".
"Não salvarão a Ucrânia. Não salvarão a Europa. Pode ser que Putin seja vencido, corroendo a sua plutocracia por dentro e mostrando ao seu povo que a grandeza que lhes promete só os levará à miséria", acredita. "Também pode ser que esta guerra não seja ganha, seja apenas travada por negociações."
De acordo com Daniel Oliveira, "a ideia de que, neste momento, poderá ser decidida uma adesão da Ucrânia à NATO ou à União Europeia só faz sentido como pressão para um processo negocial com a Rússia".
Bastaria que houvesse deste lado alguém que partilhasse a falsa coragem da loucura e não o realismo das décadas de Guerra Fria, a que alguns chamariam de cobardia, para que acontecesse uma tragédia
"Uma adesão imediata seria fechar as negociações e assumir que só resta o caminho da guerra. Isso seria, claro, uma mentira impraticável o que toca à união nos próximos anos", avisa, recordando as palavras de Josep Borrell: "Este é um momento para resolver o que está próximo, não para determinar o que acontecerá daqui a anos, quando nem sabemos o que se passará daqui a dias."
"Sabemos bem que tipo de pessoa tem acesso aos códigos nuclear em Moscovo. Bastaria que houvesse deste lado alguém que partilhasse a falsa coragem da loucura e não o realismo das décadas de Guerra Fria, a que alguns chamariam de cobardia, para que acontecesse uma tragédia. Coragem e inteligência. Só assim Putin pode ser derrotado sem nos derrotar a todos", remata.
* Texto redigido por Carolina Quaresma