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Perguntei à Sophia (de Mello Breyner Andresen - e, nessa altura, também Sousa Tavares) porque é que ela achava que o Luís (Sttau Monteiro) mentia tanto.
«Talvez por ter ouvido mentir tanto em pequeno» foi a resposta. A Sophia era assim, direita ao assunto. Numa outra tarde na Travessa das Mónicas, com o seu caderno de papel almaço de vinte e cinco linhas e o seu lápis, tendo-lhe eu dito que andava agora a escrever versos em inglês, comentara: «É uma língua muito bonita».
No começo dos anos sessenta do século passado dei-me muito com a Sofia e o Tareco (Francisco de Sousa Tavares, seu marido), advogado monárquico e anti-stuacionista, de estilo também próprio, diferente do da Sophia mas de coragem igual. De entrada, embirrei com ele, devido ao seu tom às vezes fanfarrão, mas depressa tal me passou, em almoço no Leão de Ouro. «Quando eu era técnico do ministério das corporações...» começou ele e eu interrompi-o. «Desculpa, Tareco, mas tu eras técnico de quê»? «Técnico de primeira classe, evidentemente!». Não era poeta mas escrevia a melhor prosa política do dia, ética, enxuta, polémica, muitas vezes sarcástica, convincente. E era das pessoas mais distantes da correção política que encontrei. Anos mais tarde mas ainda antes do 25 de Abril, vindo de Londres por uns dias, tomávamos os dois um copo no Ibéria perguntei-lhe se conhecia homem de negócios com quem eu queria falar. «Não, de todo». Calou-se, beberricou mais uns goles e, de repente, soltou: «Que disparate! Conheço lindamente - ainda outro dia lhe parti a cara!» A sua coragem, de resto, figura na iconografia nacional, assente sobre uma guarita do quartel do Carmo, megafone na mão, a 25 de Abril de 1974.
Vivi momentos memoráveis na Travessa das Mónicas. Um jantar pequeno, dado a Ruben Braga, escritor que Jânio Quadros nomeara embaixador em Marrocos, viera de barco, fizera escala em Vigo onde não saira por Franco ser fascista e se metera a provocar o chefe dos Guardias Civiles. Dissera-lhe mal do fascismo, de Franco, de Espanha e, depois, de Vigo. Aí, o galego rompera o silêncio: «Pues Vigo,para lo ques Vigo, no está mal!». Ou recepção grande, com o Lopo Lafões a dizer a plebeu esquerdista «Sabe, eu não sou revolucionário...» no tom apologético de quem tivesse vindo de gravata a festa para a qual ninguém mais pusera a sua - e o esquerdista a responder, feliz, «Se ainda não houvesse Duques, seria com certeza».
No Outono de 1974, apoiado por muitos no Partido, Manuel Serra disputava em congresso a chefia dos socialistas a Mário Soares, considerado à direita demais. Meia dúzia de nós, incluindo o Tareco, redigiu em casa dele moção tão à direita que poz Soares ao centro e o ajudou a manter a sua linha e a chefia. Se Soares tivesse perdido, Carlucci não teria conseguido conter Kissinger e Portugal haveria passado um mau bocado. (De vez em quando Sophia queria incluir frase sobre a cultura. Nunca o conseguiu mas, entre mortos e vivos, é hoje a mais estimada de nós todos).