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Um trabalho publicado hoje pelo Jornal de Notícias fala de três crianças que são estrelas de telenovela.
A Matilde Serrão tem 12 anos, entrou na novela Golpe de Sorte a fazer de cega, trabalha desde os cinco anos e deu polémica quando usou uma arma na novela Paixão.
O Tomás Andrade é o personagem "Martim" na novela Terra Brava e, com 13 anos, faz de paraplégico. Começou a ter aulas de teatro aos seis anos.
A peça do JN refere ainda a Margarida Serrano, 11 anos, que interpreta Ritinha na novela Corda Bamba.
Trabalhar numa novela é duro - as filmagens são intensivas, são dias seguidos a estar 12 a 16 horas a filmar cenas, muitas vezes a horas noturnas ou de madrugada. As equipas de atores e técnicos acabam essas jornadas de trabalho simplesmente exaustas.
Creio que foi uma legislação de Bagão Félix, quando foi ministro da Segurança Social e do Trabalho de Durão Barroso, que introduziu limitações ao tempo de trabalho dos atores menores e introduziu obrigações de períodos de pausa e limitações horárias para as crianças que trabalham em televisão.
Mas essas limitações tentam apenas garantir períodos de descanso e esquecem a gestão do tempo que sobra à criança fora da novela.
A diretora da agência que gere a carreira da Margarida Serrano conta ao JN que a principal preocupação é o bem-estar da criança e garantir que ela tem boas notas e não falta às aulas.
A própria Margarida, que está no 7º ano de escolaridade, diz que quando não tem aulas grava os episódios da novela onde atua e, depois, quando chega a casa, faz os trabalhos de casa.
O problema é que a lista dos seus deveres não acaba aqui - a Margarida tem ainda de estudar e decorar as cenas que vai gravar no dia seguinte.
Poderíamos dizer que isto é o mesmo que um estudante de música ou um praticante de desporto. Não é.
Além do esforço me parecer muito maior falta analisar outro lado do problema, que me parece que a lei ignora: o tema da agressão psicológica sobre estes menores, que a interpretação de alguns dos papéis podem implicar - mesmo que eles saibam que estão a fingir.
Será saudável para a mente, para a saúde psiquiátrica de uma criança, interpretar papéis com a intensidade de uma personagem que é cega, quando a criança não o é?
Será saudável para a estabilidade emocional da criança fazer o papel de um paraplégico, com diálogos realistas com supostos familiares, duros e violentos, quando esse pré-adolescente, na realidade, não sofre dessa doença incapacitante?
A mesma Margarida, aliás, só aumenta as minhas dúvidas sobre a razoabilidade de tudo isto quando explica ao JN as dificuldades do papel que desempenha, ao fazer a personagem Rita.
Diz ela que "as cenas em que a Rita se emociona são as mais complicadas, mas chorou de verdade quando teve de cortar os longos cabelos".
Repare-se como a Margarida, a criança verdadeira, fala da Rita, a personagem, como se esta fosse outra pessoa, uma pessoa já tão real na sua cabeça que a leva a dizer que ela "chorou de verdade".
Mas sobre a mesma cena, mais adiante, ela diz isto: "Havia muito de mim, Margarida, ali. Mas o que importa é que a cena ficou forte e bonita"...
O que importa à Margarida, na sua inocência e entusiasmo, é conseguir cenas fortes e bonitas apesar da frase que uma psicóloga diz ao JN talvez devesse alertar quem toma conta dela: "a carga negativa que as cenas exigem podem levar a criança a sentir-se mais triste, ansiosa e a revelar-se agressiva", afirma Filipa Rouxinol.
É claro que não quero acabar com a possibilidade das crianças serem atrizes, mas receio bem que estejamos a perder o equilíbrio e o bom senso nesta questão. Duvido mesmo que haja fiscalização séria sobre isto e que a lei, apesar de limitada, seja aplicada com rigor. Duvido também que a lei atual seja aplicada seriamente, mas, mesmo se for, ela é curta para prevenir todos os problemas que podem surgir.
Vivemos numa sociedade que por vezes é acusada de superproteger as suas crianças.
Qualquer notícia sobre agressões, maus tratos, abusos, trabalho infantil, abandono ou insultos a crianças mobiliza, e bem, a atenção de todos nós e gera enormes coros de indignação. Às vezes até exageramos.
Porém, todas as noites, milhões de nós veem crianças numa situação física e emocional extrema, expostas cruamente à curiosidade geral, e toda a gente parece andar confortável com isso.
Eu, peço desculpa, mas não estou.
TSF\audio\2019\11\noticias\18\18_novembro_2019_a_opiniao_de_pedro_tadeu