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Primeiro, as boas notícias. Na última década, a prevalência da demência diminuiu e estima-se que haja menos cerca de um milhão de pessoas afetadas em relação às estimativas anteriores. Os dados do relatório Alzheimer Europe, divulgado ontem e resultante de uma análise colaborativa dos estudos de prevalência mais recentes, sugerem que estilos de vida mais saudáveis, melhor educação e mais controlo dos fatores de risco cardiovasculares terão contribuído para reduzir o número de casos. Nesse sentido, dão esperança e mostram que nem tudo é inevitabilidade num campo em que ainda temos mais dúvidas do que conhecimento.
Ainda assim, a curva deverá continuar a subir à medida que se eleva também a longevidade. Atualmente há 9,7 milhões de pessoas atingidas. Se nada mudar na prevenção e no tratamento, esse número poderá quase duplicar até 2050. O aumento significativo de pessoas com mais de 70 anos é a principal explicação para o cenário assustador traçado pelos estudos.
As mulheres não são apenas mais vulneráveis enquanto doentes, mas também enquanto cuidadoras.
Os números têm outra nuance que merece uma análise aprofundada. O impacto da demência tem género e lê-se com mais intensidade no feminino. As mulheres atingidas representam mais do dobro dos homens - são 6,6 milhões, enquanto há 3,1 milhões de homens afetados. Algumas pistas já explicam porquê. Desde logo o facto de terem uma esperança média de vida maior e sofrerem sintomas mais severos. Há também uma influência das alterações hormonais no metabolismo cerebral depois da menopausa, nomeadamente a perda de estrogénio, cujo défice pode levar à demência. Estas explicações carecem, contudo, de mais aprofundamento e muito do esforço da investigação deve ser canalizado nesse sentido.
Olhar para estes dados constitui um desafio gigantesco para o sistema de saúde.
Os investigadores nesta área apontam outras marcas de género nas consequências das demências. As mulheres não são apenas mais vulneráveis enquanto doentes, mas também enquanto cuidadoras. O papel assistencial continua a ser muito feminino e os dois aspetos estão, aliás, profundamente ligados. Uma mulher com demência resiste mais a reconhecer a doença e os seus efeitos, porque sente que deixar o papel de principal cuidadora da família é uma perda de identidade. E essa perda é o aspeto mais temível de doenças que vão deteriorando de forma crua e gradual a identidade e a independência. Ninguém quer sentir-se menos pessoa ou deixar de reconhecer aqueles que ama. Perder o eu e o outro.
O grande desafio do futuro não é viver mais: é conseguir manter a qualidade de vida em todas as suas fases.
Olhar para estes dados constitui um desafio gigantesco para o sistema de saúde. Na investigação (em que, historicamente, o investimento é menor quando comparado com outras doenças também com elevada prevalência e mortalidade), na aposta em programas direcionados de prevenção e na preparação do sistema de saúde para uma resposta de qualidade aos desafios que o envelhecimento coloca.
As doenças associadas ao envelhecimento levantam, além disso, desafios sociais complexos, que nos obrigam a pensar que redes familiares e que estrutura temos para enfrentar potenciais situações no nosso círculo. A ciência e a tecnologia têm conseguido respostas para nos fazer viver cada vez mais anos, rompendo barreiras e mexendo na estrutura da pirâmide etária. O grande desafio do futuro não é viver mais: é conseguir manter a qualidade de vida em todas as suas fases. Sem medo de deixarmos de ser quem somos.
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