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Nesta aldeia beirã de algumas centenas de gentes, a Idade Média tardou-se até meados do século XIX. Sitiados entre fartas torrentes de água - o Ocreza, a Fróia, o Alvito - e entaipados pela Serra das Talhadas, os montenses nunca tiveram o privilégio da locomobilidade. Até a Estrada Real 10 e quatro pontes de xisto serem construídas entre os reinados de D. Maria II e D. Luís I, a ligar Castelo Branco a Proença-a-Nova, os habitantes da aldeia movimentavam-se apenas até aos limites do repique do sino da igreja. Mesmo o século XX chegou lá tarde. A eletricidade, apenas em 1970. A água canalizada, em 1955. O alcatrão, em 1960. O saneamento, nos anos 90. Até ao 25 de Abril, a ordem pública era imposta por um "regedor", em representação do Estado, e por um "julgado de paz", a versão beirã dos sobas de Angola.
O isolamento das pessoas desta região foi largando todo o tipo de vestígios. No cemitério da aldeia sobejam os mesmos sobrenomes, como Mendonça e Henriques. Na gastronomia, o plangaio, a "selada" de almeirão e o bolo finto, dizem os velhos acorcovados, só se encontram por aqueles vales. Numa igreja que já não existe, um insólito demónio pintado em tábuas de madeira, violava a castidade da Igreja Católica. Durante séculos vivia-se e vestia-se do que se plantava nas hortas e se criava nas "lojas" das casas de pedra de xisto - das cerejas serôdias às fibras do linho, dos machos aos cabritos.
Forçados a viver para dentro, os inquilinos permanentes daquela região cultivaram o comunitarismo, sem que por lá houvesse leitores de manifestos ou de cartilhas. Ainda hoje se veem os sinais: a Mina do Povo, construída nas décadas de 50 para irrigar os limoeiros da aldeia próxima do Chão do Galego, os fornos e os lagares de azeite comunitários, intervalados pelas aldeias, as azenhas do Alvito e da Fróia, construídas de sol a sol com muitas mãos. As adegas, ubíquas, eram os lugares onde em setembro os homens de pernas atroncadas se juntavam para pisar, ao mesmo tempo, as uvas e a ciência moderna, com um olho em crendices menstruais e o outro nas superstições da lua.
Nos Montes da Senhora, a vida comunitária não era uma escolha, mas um expediente para escapar à morte temporã.
Ao ler, este fim de semana, um livro com a história daquela freguesia, da autoria de Victor Neto, com inúmeras passagens sobre a história milenar daquelas aldeias, lembrei-me de um outro, de James Arbib & Tony Seba sobre o futuro da nossa civilização. Argumentam os autores anglófonos que o prevalecente sistema de produção transitará de um modelo industrializado e centralizado de extração, que exige produção massiva e movimentações intercontinentais, para um modelo de criação localizada onde dependeremos da nossa capacidade de manipular fotões, eletrões, DNA, moléculas e bits quânticos. Neste modelo de desenvolvimento físico local, com impressoras 3D e produção de energia em casa através de painéis solares OPV, a organização social será mais colaborativa e autossuficiente. Em vez da disputa global por recursos escassos, os principais pilares da economia moderna - energia, alimentos, e materiais - serão desenvolvidos localmente de forma a satisfazer necessidades individuais, fomentando-se a criação de pequenas comunidades autónomas de interesses comuns. Seremos, dizem os autores, aldeões por vontade, não por necessidade.
Contava-me o meu avô Sebastião, em historietas de fogueira, que, no início do século, todas as famílias da aldeia eram agricultoras e artesãs. A esses se somavam os que tinham aptidões específicas que serviam as necessidades da comunidade, como o ferreiro, o albardeiro, o carpinteiro, o pedreiro, o mezinhão, o sapateiro ou o almocreve de azeite. Todos sabiam um pouco de tudo e alguns sabiam muito de um pouco.
Em 2020, com a pandemia, já tivemos a primeira experiência desse mundo que será composto por muitos pequenos mundos. Ironicamente, a mesma tecnologia que permitiria que vivêssemos em todos os lados ao mesmo tempo também facilitará que vivamos de forma mais localizada, contando com o nosso conhecimento, além do dos novos mezinhões da bioengenharia e dos novos almocreves de Big Data, para que tenhamos acesso customizado, próximo e ilimitado ao que precisamos.
Ainda que a internet de fibra ótica seja atualmente mais rápida nos Montes da Senhora do que em Lisboa, a aldeia ainda está longe de ser um centro tecnológico. Os nativos e os cinco estrangeiros que lá vivem não são especialistas em engenharia genética. Mas os Montes da Senhora dos séculos passados talvez nos possam oferecer um prelúdio dos tempos que virão.
*Rodrigo Tavares é fundador e presidente do Granito Group. A sua trajetória académica inclui as universidades de Harvard, Columbia, Gotemburgo e Califórnia-Berkeley. Foi nomeado Young Global Leader pelo Fórum Económico Mundial