"A Opinião" de Fernanda Câncio, na Manhã TSF.
Corpo do artigo
Se perguntar à maioria das pessoas porque é que se decidiu chamar drogas a um certo número de substâncias e proibi-las, não saberão responder.
Mas é simples: a proibição dessas substâncias decorre de três convenções da ONU, a primeira das quais com 58 anos.
A canábis, mais conhecida como chamon, haxixe, erva ou marijuana, está classificada, nessas convenções, entre as substâncias consideradas mais perigosas, na mesma tabela que a heroína - a tabela IV.
TSF\audio\2019\02\noticias\13\13_fevereiro_2019_fernanda_cancio_droga,_loucura,_morte_e_seus_herdeiros
Tal classificação não decorreu de quaisquer estudos científicos. Mais: os estudos científicos efectuados desde então não a suportam.
No entanto, há quase seis décadas que países como Portugal gastam milhões a reprimir o consumo, a produção, distribuição e venda de canábis, dando milhares de milhões a ganhar ao crime organizado.
A racionalidade desta proibição há muito é discutida.
E mais ainda desde que o uso, produção e venda de canábis foram sendo legalizados em cada vez mais países, primeiro para fins terapêuticos e depois, a partir de 2012, para fins recreativos, a começar pelo Uruguai e pelo Estado americano do Colorado. Desde então outros nove estados americanos e o Canadá seguiram-lhes o exemplo.
Agora, a Organização Mundial de Saúde, que tinha já em 2017 anunciado uma reavaliação da classificação da canábis, recomendou que esta seja retirada da tabela da heroína e colocada na tabela I, que se destina "a substâncias psico-activas com potencial de dano" mas que podem ter uso terapêutico.
A recomendação foi enviada em 24 de janeiro ao secretário-geral da ONU. Guterres, o primeiro-ministro que em 2000 descriminalizou o consumo das "drogas" em Portugal, deverá apoiar a alteração: é sabido que, tal como o ex presidente Jorge Sampaio, advoga uma reforma global da política das drogas.
É também sabido que, com o crescimento da indústria global da canábis, a intensificação do seu uso terapêutico e cada vez mais países em violação das convenções, mais tarde ou mais cedo a ONU vai ter de retirá-la das tabelas.
Perante esta evolução internacional, custa a perceber que por cá a maioria dos decisores políticos pareça manter em relação ao tema uma perspectiva semelhante à dos cartazes que nos anos 70 garantiam que a droga (qualquer uma) leva à loucura e à morte.
Custa especialmente ouvir o médico João Goulão, desde 1998 à frente do combate ao consumo de substâncias aditivas - incluindo os legalíssimos álcool e tranquilizantes - a dizer que "não faz sentido distinguir entre drogas leves e duras e portanto, a legalizar, legalizava-se tudo." Sendo que o mesmo Goulão prescreve "cautela" e acha que é preciso "dar tempo às experiências dos outros países na legalização para ver como correm."
Vamos lá a ver: ou bem que somos cautelosos e vamos passo a passo, como aliás outros estão a fazer, ou somos doidos e é tudo ou nada. Defender as duas coisas ao mesmo tempo é que é capaz de não fazer sentido. Como não faz sentido fingir que não está tudo a mudar nesta área, e que a questão não é só a de saber se Portugal quer honrar a sua fama de vanguardista, granjeada com a descriminalização de há 19 anos, ou fazer de velho do Restelo e ficar para o fim.
*a autora não escreve segundo o Acordo Ortográfico de 1990