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Era por esta altura, em meados de julho, dias de calor. Na rua das Canas, onde cresci na casa gandaresa dos meus avós, tudo se acalmava no pátio quando ao fim da tarde atravessávamos a estrada para ir para a terra em frente, uma terra boa e nutritiva, onde as areias do mar terminavam e os barros da região da Bairrada começavam. Íamos regar o milho aí semeado, e que já ia mais alto que eu. Era o meu trabalho preferido de criança, porque me soava a brincar.
Com as calças arregaçadas como os pescadores da arte xávega da vizinhança, seguíamos pé descalço abrindo e fechando os regos à água, encaminhando-a assim pelas valas e leiras até que todos os pés de milho recebessem a frescura da água que lhes matava a sede.
Hoje, quanto mais avanço na vida, quanto mais vivo no meio do ruído, mais amor sinto pelo silêncio, pelo verde da natureza, pelo azul do mar, pelo cheiro da terra molhada depois de regada. O planeta Terra é a nossa casa. Não temos mais nenhuma e estamos a destruir tudo. Vamos ficar sem onde viver se continuarmos sem ver isto.
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A dor de coração esta semana foi grande ao sentir o fumo dos incêndios a invadir-nos e a pensar em tantos quantos foram invadidos pelo fumo, mas também pelo fogo, perdendo os seus pertences.
A crónica de hoje não é a de um especialista, perito na matéria, mas a de um amador, no sentido etimológico do termo: aquele que ama.
Ouvimos o primeiro-ministro António Costa falar da importância de cadastrar e identificar os donos dos terrenos, mas tudo isso cheira a fumo de castigo, tudo isso cheira às multas pela não limpeza dos terrenos.
Em Portugal, abusam-se das políticas e medidas que proíbem, que multam, que limitam, que obrigam; e faltam as políticas que incentivam, que encaminham, que entusiasmem.
Em crianças, não multávamos a água para ela seguir seu caminho nos regueiros. Encaminhávamo-la abrindo e fechando os regos. Abríamos caminho... e faltam em Portugal políticas que abram caminhos.
Quem tem terrenos rurais e florestais procura tirar partido deles, lucro. Legitimamente procura o que pode e consegue e é por isso que temos eucaliptos em minifúndio, ou pinhais ou outras resinosas bastante inflamáveis. Imperam em Portugal as monoculturas florestais e bem sabemos que a floresta original só sobrevive com sustentabilidade se tiver diferentes espécies de árvores e plantas complementando-se entre si.
Manter esta floresta diversificada não está ao alcance de proprietários idosos e com filhos que vivem longe sem poder ajudar.
Manter e criar esta floresta diversificada num terreno particular, tal como limpar os terrenos, obriga o proprietário, mas beneficia todas as pessoas. E esse benefício público não é incentivado ou pago aos donos. Os eucaliptos são.
Se o Estado quer ordenar o território, salvar o país da tragédia cíclica e repetida dos incêndios precisa de castigar menos e incentivar mais; precisa de compensar e recompensar os proprietários pelas perdas financeiras de não plantarem eucaliptos e de seguirem outros modos de organizar o seu quinhão de terra do qual todo o país e o mundo beneficia.
Mais que castigar, obrigar, multar, o Estado precisa de encaminhar e de fazer políticas de incentivo às pessoas que governa para que livremente implementem as melhores práticas do bem público, conciliando-o com o interesse privado. Este tesouro imenso que é o planeta e que estamos a destruir para os nossos filhos e para nós, não terá volta se continuarmos sem rasgo. Mesmo que o caminho seja longo, ele tem de ser começado. As alterações climáticas estão aqui e são já quase irreversíveis.
É tempo de coragem e decisão que reaja com eficácia ao que está a acontecer.
Somos nós, humanos, que estamos em causa. O planeta sobreviver-nos-á.